sábado, 13 de dezembro de 2014

Não está... mas está em todos os corpos

Chegou. Um barulho. Algo morto estava ali dentro daquela vida. Quando criança, chegara a acreditar em ressurreição. O deus maior não permitia a dúvida.
Acreditava que, depois do fechar de olhos, seu corpo teria a vida de novo, em algum canto do céu.
O olhar mais tenebroso! Parece que a moça do catecismo estava certa! Ressurreição... Aquela catecista de cabelos enrolados só se esquecera de explicar que a ressurreição acontece no labirinto das veias mais podres e petrificadas.
O que acordou? O que foi pedido?
Uma poça de sangue para ser adentrada... Como?
Risos... Escárnios... Uma dor coroada com os espinhos do Cristo.
Sentiu mais uma veia podre pedir vida. Tão belo esse Cristo na cruz.
Mais uma veia pede vida.
Mais um sexo, mais pernas, mais uma tentativa...
O corpo que pede a ressurreição das veias não está... mas está em todos os outros que a entrelaçam...
Tentativas inúteis de pegar o que lá foi colocado... Lá? Onde? O quê? Para quê? Por quê?
As veias pulsam e querem dar vida à morte... conseguem.  Algo vivo, demasiadamente vivo, a leva para um abismo, uma loucura, um florescer.
Mais pernas, mais, mais e mais...
Tentativas inúteis, sexos inúteis.

As veias pulsam... Eram mais belas quando estavam podres.

sábado, 27 de setembro de 2014

Destrinchador não destrinchável

Aula de Língua Portuguesa, não sei em qual ano, não sei em qual série. Professora: Maria do Carmo.
__ Paulo Maluf não é político. Ele está político...
Me assustei! Resolvi firmar a atenção na professora. Meu pensamento, desde sempre, resolve dar umas voltinhas por aí, por lá, por cá...
A professora destrinchou os verbos ser e estar.
Fiquei confusa, perdida. Não consegui destrinchar-me.
Sempre gostei de fazer exercícios de gramática, mesmo quando não entendia a finalidade. Classificar os verbos, descobrir as orações subordinadas, as coordenadas etc etc... tudo era uma aventura para mim.
Entretanto, descobrir que descobrir a classificação ou nomeação de algo não finda nada, mas abre outros algos, outras portas, que abrirão outras coisas, outros outros... ah... teve/tem um cheiro epifânico.
Meu pensamento ganhou passagens para outras viagens... se embrulhou numa maçaroca tão saborosa quanto perturbadora.
As coisas estão! Muitas vezes, insistentemente, as coisas estão por muito tempo. Buscam um status de ser, talvez por clamarem uma absolvição. O escorregão traz de volta o estar, denso, pesado, mutável, destrinchador não destrinchável.
A rota do verbo estar me apetece, talvez por minhas costas não suportarem o peso absoluto de ser.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

A mais bela de todas elas...





Fios de neve
cura de feridas
na pele... além dela

ossos
deterioração
sustentação
Criação!

Pelo sinal!
a Santa
Cruz libertadora

Respeito 
Proteção
Pilar vívido... vivido

Histórias
remendos
remédios
nas letras...
jamais decifradas
Idolatria dos livros

lágrimas
abraços
mãos
cheiro
Louvor...






segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Tempo para o nada

Nada...
Necessidade de nada
Piedade!
Um nada para invadir
e
Gerar o nada

Adentrar a insanidade
Descobrir o eco do fruto descartado
Resgatado... enigma

Decodificar, enrijecer a dor
Tempo
Nada
O nada


sábado, 2 de agosto de 2014

É isso mesmo, José?




Então, quer dizer que você se foi mesmo?
1
2
3
4
quase
5

anos e


ainda quase
quase o vejo quando viro a esquina
quase enlouqueço nos nossos quases
quase o encontro naquela paixão
quase o busco nos bares

Quase o vi pela última vez
mas você veio lacrado
me mandou apenas uma foto
ficou ali dentro
a noite foi quase insuportável

Suportei

ainda era bom ter seus restos por perto
e ainda havia o mais infame dos sentimentos
a esperança
a caixa aberta, seu corpo, seus calos, seus lábios, sua camisa...

Mas você se foi sem se abrir
Imponente, foi para debaixo da terra
Seu retrato também se foi

Quase!

Quase choramos juntos
Quase torcemos juntos
Quase recomeçamos juntos

Cindidos e sentidos, vivemos uma boa dose do amar
Ah! José! E aprendemos o que os poetas ensinam há tempos!
Apreendemos toda dor que existe no amor...

É isso mesmo, José?
A caixa ficará lacrada?
E a casa da esquina?
Você insiste em me dizer que ainda está lá...
E às vezes me diz que está na casa ao lado... da casa de esquina...

Abra a caixa, José!
Abra!
Para que seus escombros me reconstituam...

Abrir-me-ei...



sexta-feira, 25 de julho de 2014

Intimidade...

"O beijo". Gustav Klimt.



Lançar aí algo que está aqui e é teu
o que está aí é meu...

Um algo, um eu partido
numa fusão densa
Uma fusão talvez percebida...
somente por um dos fusionados

Indicar
Mostrar
Escancarar a fusão
nos olhos e ouvidos do outro...
pode consistir no mais alto grau de intimidade...

domingo, 20 de julho de 2014

Um outro gozo? Para quê?

Todos certos do espaço ocupado
Não há tempo para não saber de qual pedaço se apoderar...
Sim! Há tempo, sim!
O buraco a ser preenchido pelo corpo dentro da máquina já foi programado...
aquele de sempre...
aquele que mantém um gole de cada vez
em doses lentas, mantendo um gozo eterno

Círculos intermináveis, minando o medo através de águas salgadas
presas e soltas na íris...
também lá... lá no espaço pavoroso
Arrancar, abrir
pisar o vidro, estancar o sangue
beber de outra garrafa, outro líquido, o mesmo líquido condensado
Condenado
Absolvido!

Absolvição
Pavor
Quero entrar ali...
Entre!
Pavor...
Não entre!
Pavor...

Um outro gozo autonegado...


sábado, 12 de julho de 2014

Denúncia...

Um equilíbrio na chama... Uma busca pelo desequilíbrio das cinzas. Um espaço...
Linhas brancas, curvas, linhas amarelas, luzes para os riscos, traços para estragar, fortalecer e denunciar.
Denúncia! 
Pulsa, pulsa, ofega, pulsa, pulsa e denuncia...
Denúncia!
Tudo riscado... arriscado? Riscos, cortes. Corte em tudo que acreditou que um dia acreditara. Vida polida para reverenciar a felicidade? Harmonia nos traços, perfeição na escolha das cores, retidão nas linhas fundadoras, uma vida enfileirada...
Riscos, cortes...
Denúncia!
Nada disso há... A linha da cor amarela escancara ser torta, lança-se na curva e talvez consiga viver sem aquele Deus (ou seria deus?).
Precisa passar na frente... na frente... de quem? Agora? Mas seu espaço é ali?
Denúncia!
Pulsar!
Veias trêmulas!
Não... não é como foi ensinado e aprendido... Sim, todo amor enlouquece, corta e recorta...
Corte!
Denúncia!
Recorte... linhas de um caderno, riscos, rabiscos. Riscos incômodos e incomodados no sorriso daquele rosto escolhido pelo pulsar do recorte.
Vida regida pela denúncia.
Ou a denúncia seria a própria vida?

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Donquixoteando

Um olhar, fotografando o intestino, as veias, a mucosa mais voluptuosa, finco labial. Suspiro arfante.
Descarga.
Uma parede apenas os separa. Não há paredes... a água despenca, cai plena, serena.
Descarga.
A chave balança, traz o pêndulo. A porta ao lado se abre. Nenhum barulho de água. Uma tosse.
A janela do ônibus sacoleja indistintamente seus membros, suas dores e sua cura. Dor? A cura chegara em forma de um espancamento coronário.
Telefone! Mãos saltitantes, unhas impecavelmente trêmulas. Não é! Nunca é! Sempre é!
Amanhã será... será nas formas torneadas de um aposento sem aposento. De um ser sem sê-lo.
Almofadas com cheiro da saliva dele, uma cama cúmplice, um cheiro de... de... de... um tom inexplicável.
Um quadro, um poema.
Escadas, subida, o deleite, o som do despencar da água, da perpetuação.
Mesmo ritmo, mesmo enlouquecer. O ritmo segue a mesma nota ali... ali em outros cabelos, outra boca, outro ombro, outras mãos.
Não... é aqui que o ritmo segue numa similaridade descompassante, fervorosa.
Um pouco de água... lucidez alucinante retomada. O olhar, a cura, o vício.
A fumaça da cama. O som da roseira. Olhar de súplica. O fígado fazendo o coração bombardear as paredes com cores, cores e cores. Um sorriso delgado.
Morros que abraçam outro cenário, outro corpo. 
Este corpo, este corpo. O abraço é aqui! Sempre aqui! Mesmo que seja lá...


domingo, 1 de junho de 2014

Tinha de dividir até a mãe...

       Um tal de João de Santo Cristo ao fundo. Uma letra meio difícil de ser compreendida, embalada por certo amigo Pedro, numa certa adolescência.

       __ Chegou! É uma menina!
       __ Não quero uma menina, quero um moleque para jogar bola comigo.
       __ Mas só havia meninas no hospital.
     Piso vermelho na casa toda... Não! A varanda era verde. Metade da parede da cozinha também era verde. A casa, o sofá, o tanque, o quarto, a mesa com gaveta na cozinha, os gritos, as brigas, o despertador barulhento, o rádio branco com o símbolo do Palmeiras, as cobertas, o pé de mexerica, as galinhas do quintal, o canteiro de almeirão... agora tudo tinha de ser dividido. Tinha de dividir até a mãe. Dividir a mãe... Talvez fosse melhor dividir os pais: o pai para ela e a mãe para ele. Não! Tinha de dividir tudo. Não tinha mais nada por inteiro.
      Casa da vó... dividir a vó era mais fácil... ela se multiplicava.
      Lição de casa! A vó dizia que, antes de qualquer atividade, deveria ser pedida a ajuda de Deus. Rezou antes de fazer a tarefa... ficou intrigada:  Mas não é Deus que me ajuda a fazer a lição, quem faz isso é meu irmão. Será que é Deus que ensina as coisas para ele?
     O irmão dividia também o conhecimento. Ele era bem sabido. Tomava a leitura até ela parar de ler de soquinho. Ele sabia muita coisa além das que a tia ensinava na creche. Ela sempre achava que todo o conhecimento passado pelo irmão, um dia, seria dado na escola e que ela estaria adiantada.
     Ele sabia que o Palmeiras era o melhor time do mundo e sabia o nome de todos os jogadores, tinha até um álbum de figurinhas. Sabia cantar as músicas da "Turma do Balão Mágico". Sabia que, na casa quase vizinha do sítio da vó e do vô, existiam fantasmas. Sabia que era o córrego perto da estrada que dava peixes. Sabia dobrar palhas. Sabia que aquela cara brava era sinal de explosões e brigas. Sabia que as casas eram feitas com tijolos e concreto. Sabia manusear a televisãozinha com fotos da Aparecida do Norte. Sabia que, se colocasse uma embalagem de chocolate na frente dos olhos, a TV deixava de ter imagem preta e branca. Sabia deixar apenas um olho aberto para ver retrato no monóculo. Tanta coisa... mas nada disso veio como matéria escolar...
      Um embrulhar vital de aventuras, tristezas e alegrias...
      Um violão, um rádio e fitas K7 levando Renato e Raul para que ela conhecesse...

      Um tal de João de Santo Cristo ao fundo. Uma letra meio difícil de ser compreendida, embalada por um certo amigo Pedro e por certa adolescência, a qual rega duas vidas adultas...
     
   


     
        

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Gota, got, go, g...

Um pingo, explosão das ondas
Pedras insuportavelmente leves
Leve! Leve! Pelas forças do inferno!
Leva!
Suga! Goteja em tua alma a lavra rastejante, fria, gélida
Lavra envolvida pelo plástico

Abundante na veia
Permissão?
Nunca! Sempre...

Mais uma veia invadida
Todas tuas de novo
Rasga a carne, arranca as vísceras
Bata pregos pelo corpo
Mas as veias...
Deixa-as
Liberta-as!

sábado, 10 de maio de 2014

Elas!




Facão na mão, palha tirada, café carpido. Suspiros selecionados, gargalhadas guardadas. Dia certo para sorrir.
Dia certo para comprar a roupa de ver Deus.
Materiais escolares gotejados com o sal da terra. O urucum dando vida às batatas.
Pamonha, milho assado, canja de galinha. Potinhos de plástico resplandecendo o arroz, o feijão, o frango caipira.
Merenda, bolo de fubá. Orações.
Enxada tirando o mato, a tiririca, a fumaça, a poeira... mostrando a estrada fincada nos livros, nas canetas, nos lápis.
Cheiro preto, forte, abraçando a doçura do bolo de fubá.
Um "Rezo 'procê' todos os dias"... força para seguir.
Um mundo aberto, trilhado pelo trator de quem desestabilizou cada moirão que sustentava o arame farpado da ignorância.



terça-feira, 6 de maio de 2014

Tábua de leite

Casa de tábua.
__ A bola caiu lá dentro do quintal!
__ Não teremos mais bola.
A bola em jogo novamente.
__ Na próxima vez, rasgo essa desgraça.
Gargalhadas!
__ Ufa! Ganhamos mais essa.
A menina afastou o cabelo dos olhos, enxugou o suor e entrou na casa.
Coração acelerado, o tanque sujo, com lodo. Cheiro de enxofre no ar. Chão de cimento. Na mesa da cozinha, marcas de um pó preto. Três canecas ensebadas na pia.
Uma cadeira de balanço na sala. Um banheiro emporcalhado.
Encostou-se na porta do quarto. Barulho de costura. Um estridente barulho de facas. Pôs a mão na maçaneta.
A porta escancarou a casa da outra rua. A casa do leite.
Garrafas e tamborezinhos na fila. A vaca de alumínio distribuía leite pelas tetas de plástico.
O cheiro da comida enfeitiçava as narinas de todos.
Subiu as escadas ásperas. Na cozinha, não havia fogão, geladeira, mesa... O banheiro era enlodado.
Lá estava ela: de costa, na sala. Com um coque mal feito. O cheiro da comida ficava mais forte. Barulho de leite fervido derramando-se pelo fogão.
Pôs a mão na maçaneta da porta do quarto...
Um tombo, um galo na cabeça, gargalhadas.
__ De novo, você escorregou na bola. Maria mole!

A noite chegou e protegeu os segredos daquelas casas de esquina.


sexta-feira, 25 de abril de 2014

Chave

Imponente, olhar feroz, com gigantesco pó pelo corpo. Inala as cores do local, absorve a força vital e a mortífera.
Com a liderança da guerra, ataca... A mesma tática. O mesmo jogo.
Obstáculo...
Inquietação do adversário.
Desejo de se deixar vencer.
Respiração triturada, atravessada pela pausa da angústia e da fúria.
Inerme! Inerme! Adversário povoado pelo temor. Invasão! Tambores adormecem o sangue.
Arsenal! Arsenal! Campo protegido, insegurança, paz, dor...
Celas fechadas.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Mais, mais e mais...

Um banho de soda cáustica, todos os poros ardem, ardem... a pomada ameniza o ardor... mais um banho, agora com água cristalina. Os olhos ainda gritam de desespero, mas já é possível levá-los até a janela:

Sacos e sacos de lixo depositados... um bigato passa pela fresta e, carinhosamente, é colocado de volta na sala.
Todos os dejetos devorados... um arroto de prazer.
Suspiro, concentração e espera.
Hálito perfumado intacto. 
Rim, útero, um pedaço do intestino grosso... Tudo ali servido fielmente.
Mais um arroto de prazer.
Mais sacos de lixos, mais fardas, mais vidas, mais extrema-unções, mais bigatos, mais arrotos, mais hóstias, mais úteros, mais rins, mais unções.







quarta-feira, 26 de março de 2014

Uma salada, por favor

Entra no mesmo restaurante.
Cada dia, com uma companhia diferente.
Naquele momento, quem estava ali era o Câncer. Aquele ser enigmático.
Ele havia passado várias vezes pelas suas proximidades. Ficava pouco tempo, fazia o que tinha de ser feito e partia.
Retornava, executava magistralmente suas funções e ia embora. Era sempre imaginado como o mestre dos mestres. Um senhor belo, alto e de face sisuda.
Entretanto, sentara-se ali um ser simples, frágil...
A minha existência permite a vida dos humanos. Eu posso ser o deus de vocês, ou fazer vocês encontrarem um deus, ou deus nenhum. O meu existir faz com que vocês realizem as atividades mais singelas. Sou eu quem os presenteia com o dilaceramento do amor. Eu existo para que vocês se encantem com as flores daquele jardim. O afeto dispensado aos seus é devido a mim.
Eu ajudo a alimentar o seu desejo insano de não querer virar pó.

__ Senhora, sua salada...

domingo, 23 de março de 2014

Mais uma vez, curvados!

Fica ali na janela, expira, inspira, baila, sorri, encanta, soluciona... e decepciona.
Com a roupa mais bela e o perfume mais atraente, sai. Os portais, as janelas, os vitrais, a porta, os vasos, as rosas, os olhos, a pele, a unha, o estômago, o piso, o lençol... todos seduzidos, todos encantados.
Senta-se, toma a bebida de sempre, abre o livro de sempre, recebe o pedido de sempre.
Caminha pelas ruas arborizadas, seduz mais algumas pessoas pelo caminho e segue firme, imponente.
Deita-se sobre o corpo, examina cada detalhe, inala todos os perfumes expelidos por aquela pele macia e forte, acaricia todos os membros.
Os dois mantêm a respiração ofegante, ofegante, ofegante.
Adentra, sai, adentra, sai, adentra e se instala no lugar desejado.

Lençóis brancos, toalhas brancas, janelas brancas, cama branca, roupas brancas...

Lá está no mesmo lugar, atendendo ao pedido de sempre, tomando a bebida de sempre, corroendo o prazer de sempre, fazendo todos se curvarem como sempre.


sábado, 15 de março de 2014

Apto...

Salvador Dalí,  Criança geopolítica assistindo ao nascimento do novo homem.


Leões...vários... vários em uma jaula. Várias jaulas. Inúmeros leões. Jaulas contornadas, jaulas espalhadas.
O pó, despótico, enclausura o sangue, as veias, as narinas... a laringe em dígitos.
As ramificações pulmonares gozam de grande fôlego.
O ataque!
O ataque!
O ataque!
De novo...
O pó adentra os poros, as narinas, o estômago precisa ser lavado, desinfetado.
As unhas contornam a jaula, as cutículas ouriçam-se, o útero gera e aborta, gera e aborta...
As ideias despem-se, enamoram-se, odeiam-se, agridem-se e outras estruturas alcançam o gozo.
O útero gera e aborta...
Os leões se alimentam dos fetos fétidos, saborosos...
Apetite! Apetite... prostíbulo felino. O pó! A laringe!
O ataque!
O ataque!
O ataque!
As veias excitadas, jorrando desejo, perpassam a entrada... a não efervescência. O útero alimenta os leões...
Apto!
Hábito!
Aptitude!
Apetite!


sábado, 8 de março de 2014

32 frascos?

Alvos, delineados, enclausuram-se pelos traços sulcados pelo deleite.
Enraizados na estrutura arcaica, ramificam-se, enforcam as entranhas daquele olho empanturrado pelos frascos... pelo frasco... há apenas um? Um frasco com 32 comprimidos, ou 1 comprimido diluído em 32 frascos?
Confusa, levanta-se.
Acha que ali no canto da cozinha deveria haver uma máquina de moer café. O cheiro do líquido que adentra o estômago dele ficaria ali todos os dias.
Abre o portão...
E os comprimidos? Deveriam ter sido tomados hoje?
Entra na padaria, os lírios branco e rosa emoldurados a recebem como sempre.
Toma o café com o homem, ou hoje seria com o menino?... Constantemente, uma surpresa... muitas vezes desagradável.
O líquido preto descendo pela garganta dele, o líquido preto descendo pela garganta dela. O líquido saído da mesma garrafa.
O sorriso... a despedida... os afazeres...
Eles brilham, tentam contar algo... não conseguem. Eles se põem vivazes, tentam remoê-la...
32 frascos... ou seriam 32 comprimidos? E aquela mucosa guardando o brilho.
Levanta-se.
__ Aqui poderia haver uma máquina de moer café.
Padaria. Lírios branco e rosa.
O líquido!
O menino...
Aspira o cheiro do café que está nas vísceras dele.
Pelo espelho, dá-se conta de que os lírios são pretos. Deveria ter tomado os comprimidos hoje?
32 frascos... ou seria 1 frasco com 32 desejos de ser o Egeu da Berenice de Poe?



sábado, 22 de fevereiro de 2014

Estilhaços


PICASSO, Pablo. A mulher chorando, 1937.


A maçaneta despencou, estilhaçou todos os pisos, o útero se desgrudou, querendo expelir a insensatez.
Os brincos jorraram sangue pelas cortinas numa busca desenfreada de se misturar com o colchão manchado  pela descrença.
Degustou o cheiro azedo instalado num pote na terceira prateleira da geladeira. Picou toda carne podre do congelador.
Sem piedade, arrastou os pés pelos quartos, abriu cada gaveta e abortou todas as roupas. O vaso sanitário emprestou suas águas para banhar todos os papéis.
A canjica apodrecida no altar arrebanhou a luz e vomitou as pimentas adocicadas pelos germes.

...

Lençol estendido
Dente
Chuveiro
Roupa
Sapato
Cigarro
Bolsa
Livros
Chaves

E desceu as escadas...

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Identidade?

   O cheiro da cana cortada misturada ao suor ainda estava ali. O cubículo escuro e nada arejado aconchegava todos os desejos. 
  A gordura já fazia parte da decoração há tempos, impossível querer removê-la, inadmissível arrancá-la das entranhas da casa.

   __ Precisamos de ácido para limpar tudo isso.

Ácido? Corroer a história? Não! Pelo amor de Deus, Não!

   __ Providenciarei o ácido para limparmos tudo.

   Tudo limpo... tudo doloridamente limpo. 

   Casa alugada, história sobreposta...

Não! Não! É uma solidão cortante não existir mais ali o cheiro do suor, do álcool e do óleo no estado de entupir as coisas.

   Restara apenas um RG e um móvel desengordurado...

Identidade? Como identificá-lo naquele móvel propositalmente limpo?

   Anos se passaram, o aroma do álcool agora engarrafado traz lágrimas, angústias e o líquido ameniza a dor.
   O móvel será levado por aquele que traz as veias entupidas de mistérios e jamais empresta a sua sujeira para reavivar o móvel carregado de alvura.

Isso! Leve-o! Deixe o álcool, deixe um pedaço seu, deixe um pedaço dele. Empreste-me um pouco do seu sebo, devolva-me a identidade dele, a sua, a nossa...

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Qual inseto?

A Grande Esfinge de Gizé, Egito.



A cama não é mais a mesma, a sala está infectada de mudanças, a cozinha exala o cheiro da transformação, o banheiro não sustenta o lugar do banho.
Eduarda não possui mais as mãos macias, nem os cabelos sedosos... o interfone toca, o sono é profundo, o som estridente, que anuncia a chegada de alguém, invade os seus sonhos.
Há um inseto ali no canto, incomodado com o barulho daquele aparelho que quer trazer alguém para seu convívio. Sai do canto, anda pela casa, passa pelos móveis, gruda na vidraça, rasteja pelo lixo da área de serviço...
Há apenas o inseto reinando no lar, Eduarda esvai-se no calor do bicho repugnante... Ressuscita, retoma seu posto de dona da casa, mas o companheiro de patas continua a perpassar pelo local.
Cansado, aloja-se no canto do quarto. O interfone grita mais uma vez...





Entrega do supermercado.





Eduarda perde-se na busca de saber quem é aquele inseto que invadiu seu sono intenso... Inseto de Kafka? Inseto de Clarice?...

Talvez seja um inseto implorando para ser decifrado e degustado... degustado por si mesmo.

Velando um caixão


MUNCH, Edvar. O Grito, 1893.

O caixão está ali, mas há dificuldade em colocar o corpo nessa caixa... Chora, reza, enlouquece de dor.
Caixão  escancarado... não há morto ali dentro, mas é preciso velá-lo... o morto ou o caixão.
Quer retirar aquele espectro do  sofá e fazê-lo entrar no caixão... cambaleando como um bêbado, ele consegue chegar próximo... precisa de ajuda para entrar na caixa mórbida... implora pela ajuda dela, mostrando-lhe  que é apenas uma fantasia...
Recusa  veemente a ajudá-lo, lutando para que aquele fantasma torne-se humano e beba com ela as dores e os prazeres da vida e fume um cigarro  para comemorar a ressurreição.  Ele se deita novamente no sofá e repousa na alma dela, contorcendo-a lascivamente.
O caixão suplica o seu choro, a defumação, o desespero, o corpo, a tampa  e a terra... Atende parte da súplica... Para o defunto, ainda cultua a esperança  leitosa. Ele  sorri com os olhos que a  destroem num imenso prazer.

A madrugada termina e ela vence o caixão... deixa-o no meio da sala, faz o nome do pai, ajoelha-se, rasteja-se num chão manchado de lamúrias e o convence a esperar mais um pouco pelo corpo.