domingo, 1 de junho de 2014

Tinha de dividir até a mãe...

       Um tal de João de Santo Cristo ao fundo. Uma letra meio difícil de ser compreendida, embalada por certo amigo Pedro, numa certa adolescência.

       __ Chegou! É uma menina!
       __ Não quero uma menina, quero um moleque para jogar bola comigo.
       __ Mas só havia meninas no hospital.
     Piso vermelho na casa toda... Não! A varanda era verde. Metade da parede da cozinha também era verde. A casa, o sofá, o tanque, o quarto, a mesa com gaveta na cozinha, os gritos, as brigas, o despertador barulhento, o rádio branco com o símbolo do Palmeiras, as cobertas, o pé de mexerica, as galinhas do quintal, o canteiro de almeirão... agora tudo tinha de ser dividido. Tinha de dividir até a mãe. Dividir a mãe... Talvez fosse melhor dividir os pais: o pai para ela e a mãe para ele. Não! Tinha de dividir tudo. Não tinha mais nada por inteiro.
      Casa da vó... dividir a vó era mais fácil... ela se multiplicava.
      Lição de casa! A vó dizia que, antes de qualquer atividade, deveria ser pedida a ajuda de Deus. Rezou antes de fazer a tarefa... ficou intrigada:  Mas não é Deus que me ajuda a fazer a lição, quem faz isso é meu irmão. Será que é Deus que ensina as coisas para ele?
     O irmão dividia também o conhecimento. Ele era bem sabido. Tomava a leitura até ela parar de ler de soquinho. Ele sabia muita coisa além das que a tia ensinava na creche. Ela sempre achava que todo o conhecimento passado pelo irmão, um dia, seria dado na escola e que ela estaria adiantada.
     Ele sabia que o Palmeiras era o melhor time do mundo e sabia o nome de todos os jogadores, tinha até um álbum de figurinhas. Sabia cantar as músicas da "Turma do Balão Mágico". Sabia que, na casa quase vizinha do sítio da vó e do vô, existiam fantasmas. Sabia que era o córrego perto da estrada que dava peixes. Sabia dobrar palhas. Sabia que aquela cara brava era sinal de explosões e brigas. Sabia que as casas eram feitas com tijolos e concreto. Sabia manusear a televisãozinha com fotos da Aparecida do Norte. Sabia que, se colocasse uma embalagem de chocolate na frente dos olhos, a TV deixava de ter imagem preta e branca. Sabia deixar apenas um olho aberto para ver retrato no monóculo. Tanta coisa... mas nada disso veio como matéria escolar...
      Um embrulhar vital de aventuras, tristezas e alegrias...
      Um violão, um rádio e fitas K7 levando Renato e Raul para que ela conhecesse...

      Um tal de João de Santo Cristo ao fundo. Uma letra meio difícil de ser compreendida, embalada por um certo amigo Pedro e por certa adolescência, a qual rega duas vidas adultas...
     
   


     
        

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