segunda-feira, 6 de abril de 2015

Morte, você é petulante!

Uma aluna do sexto ano, dias atrás, depois da leitura de um texto que falava sobre o fim da vida, disse:
__ A morte, às vezes, pega pesado, né, “psora”.
Comentários surgiram a partir disso, a aula fugiu (ainda bem) do que estava programado  e a frase dessa pré-adolescente ressoa em mim desde então.
“A morte, às vezes, pega pesado”...
Ah! Às vezes? Não é sempre que essa senhora pega pesado? E, brilhantemente, ela é de profunda importância... Saramago nos ensinou isso em “Intermitências da morte”... Tantas outras pessoas nos ensinaram/ensinam isso...
Mas qualquer escrito perde valor no momento em que a morte vem para aqueles que acreditávamos que nunca morreriam...
Já escrevi e falo sobre o medo que eu tinha de a vó Tunica desaparecer enquanto eu estava na creche. Quando descobri que isso não aconteceria, determinei eternidade para ela.
No dia 5/3/2015, algo resolveu contrariar minha sapiência infantil... e a vó Tunica teve de partir.
Um mês após esse grande peso da morte, começo a sentir o alívio que o peso da história pode proporcionar.  Uma história cravada nas palavras... Isgrise, esbrontolar, jhavai, dirondar, tonheto, garribarde... Dar significado para esses vocábulos é quase impossível... buscam-se definições para essas e outras expressões; no entanto, a força delas está na vó, é a própria Dona Tunica:  Contar pratinhas para pagar as contas, ensinar que, na vida, para tudo tem um jeito, bater palmas quando o “parmera vara um gô”, mandar arrumar o chinelo que está  tonheto, ficar com isgrise, gritar de dor ao saber da morte do meu pai, sempre trabalhar e cuidar muito de todos, fazer sopa de macarrão comprido ou macarrão picado, pegar o istroce para pôr ali no coiso, rezar, contar as histórias da Sá Maria, da panela de polenta que a bisa não permitia que fosse lavada no outro dia, ensinar a importância de se ir à missa e aos velórios, fazer  visitas na casa da “cumade” Ana, cortar cabelo na Leninha... As histórias da vó, lembradas, esquecidas, relembradas,  sempre dirondarão por todos nós, sobrepondo seu peso ao da morte.
A vó Tunica sabia que a história era mais forte que a partida, construiu, para nós, o “nonim”, por meio de relatos (nunca precisamos de retratos para vê-lo nas festas e lidas da roça e, até mesmo, na dor de ter uma doença incurável).
Muitas vezes, procurei Deus, deuses, santos, entidades, velas e, inclusive, o nada, para entender  o susto, a revolta, a dor de ver alguém tão amado partir. Depois de tantas perdas, agarrar-me ao não entendimento da morte, sentindo o peso dela, me traz a força  histórica, que me deixa respirar e me curar, como os queijos no sítio do Zé Peron, o qual  também nos deixou grandes histórias... deixou lá a cadeira dele, o chamamento da vaca Guaíra, o recitar mais belo de xingamentos, a força do trabalho e do olhar. Lá do sítio, sai o cheiro do pão de chocolate... e sai, também,  lá da casa da tia Isabel, a Beluda, que fazia pão e chá de chocolate... proseávamos e proseávamos... era prosa para mais de metro. Ela ainda grita dentro de nós: “Cala-te, boca.” “Cê que não muda esse jeitinho, não.” “Oh, língua maléfica”...
As histórias dessas e outras pessoas amadas  constroem minha história, meu sangue... que é perpassado pelo Zé, meu Zé Umberto Gazola, trajado de  durezas e fraquezas... Meu Zé... Meu e da vó Tunica, a essência da minha explosão perante a história.
A morte pega pesado... Muito pesado! Ela é petulante o suficiente para nos deixar no desamparo da ignorância...
Que as histórias possam sempre me reconstruir...


4 comentários:

  1. Que gostoso ler você, Eliana!!! Parabéns pelo texto e pela sensibilidade!!!! beijocas da Van

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  2. Nossa, Eliana! Adorei! Que nunca te falte muitas inspirações para nos inspirar. beijos de Diana Conrado

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