Sim! O corpo no caixão era o dela. Não queríamos que fosse.
O velório se iniciou; do carro de som, saíram tão inacreditáveis palavras:
"A família Gazola anuncia o falecimento de Antônia Rossetti Gazola, mais conhecida como Dona Tunica. (...) O enterro será no dia 6/3 às 8h (...)"
Enterro... Enterrar a vó Tunica. Ah! Alguém estava fazendo uma brincadeira de mau gosto. Nós jamais deixaríamos a terra cobrir a nossa amada... Mas o corpo dela, gelado, com flores, com um rosário, gritava que a vó também fazia parte dos corpos mortais.
O corpo mortal tão carregado da imortalidade, sustentada pela força das lembranças e do amor.
Muita dor, tristeza, pranto e, no decorrer da noite, risos, histórias e mais histórias da vó com seus netos.
Eu tinha 8 meses de idade, quando comecei a passar o dia todo na casa da vó. Meus pais trabalhavam e me buscavam à noite.
Ela sempre contava que eu assistia à novela dos gatinhos com ela e também que morria de medo de passar pelo portão da rua sozinha. Não me lembro disso, mas recordo-me do temor que tive quando, aos 5 anos, comecei a frequentar a pré-escola, na creche, que ficava quase em frente à casa da vó. Eu queria que o dia passasse muito rápido para eu ter certeza de que ela ainda existia ali do outro lado da rua.
Depois, descobri que, mesmo eu não passando o dia todo com a Dona Tunica, ela não sumiria. Que alívio!
Aos domingos, íamos à missa juntas. Eu não entendia muito bem tudo o que era falado pelo padre Franco, mas de uma coisa eu tinha a máxima certeza: "Oremos" significava: "Levantem". Ele dizia: "Oremos" e todos se levantavam... Passaram-se alguns anos para essa minha certeza ser substituída pelo entendimento do ritual.
Hoje o mesmo padre Franco rezou aos pés do corpo da vó. Ele não disse a tão marcante palavra, porém, assim que ele chegou perto do caixão, levantamo-nos... Lembrei-me das cenas dominicais e pensei que minha maluca certeza poderia ter um pouco de razão...
"Tudo dia, eu rezo proceis. Pro meus fio, pro meus neto... pa tudo, pa tudo." Imagino que tenhamos nos levantado de tantos tombos pelo amor da oração da vó.
E o amor dela também me fez amar as palavras. Quantas e quantas vezes ela ouvia minhas histórias inventadas e dava trela para eu prosseguir.
Num dia, sentados no chão da varanda, eu e meu primo contávamos para ela mais uma invenção literária. Ela disse:
__Que história mais sem pé, nem cabeça...
Respondi que o menino da história não tinha nem pé, nem cabeça mesmo...
__ Ah é?
E continuou emprestando toda sua atenção de leitora de narrações.
Ah! E a paixão dela pelas palavras em forma de letras... Era analfabeta, em razão de "mulher não tem que ir para escola", regra impregnada em boa parte da sua vida. Depois de adulta e já com netos, embora insistíssemos, não quis quebrar esse "tabu", talvez por vergonha...
Bom! Mas mesmo "sem leitura" (como ela dizia), nos ensinou a beleza e o prazer dos estudos...
Ensinou-nos tanto, tanto... A maior lição foi a do amor, esse sentimento tão difícil de se atribuir um significado que o abarque completamente.
Hoje, vó, me despedi da senhora, como sempre: "Tchau, vó. Bença." Mas não ouvi as palavras que acompanhavam nossas despedidas: "Tchau, Lianinha. Deus te 'bençoe'. Toma cuidado por tudo. Tenha uma boa noite sagrada. Vai com Deus e Nossa Senhora."
Ah, minha, nossa, vó Tunica... quanta saudade!!
Mande um beijo meu aí para seu amado filho __ meu velho pai...
Tchau, vó. Bença.
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