sexta-feira, 15 de abril de 2016

Odores de pedra

    Maria Flor nascera num ambiente em que nunca fora desejada. Perambulou durante os nove meses na barriga da mãe, sendo marcada pelas palavras impostas em sua casa.
    Quando o nascimento ocorreu, foi recebida por uma avalanche de não existir, embrenhou-se em uma guerra pela sobrevivência e adaptação. Perpassada por significantes desastrosos, lutava para entender que o bem-estar existia.
    Em uma tarde ensolarada, dia de seu aniversário de dez anos, foi cumprimentada pelo seu primo. Sentiu tanta tristeza, não controlou o choro.
    Escreveu em um caderno que estava triste e, como sempre, não sabia o motivo.
    Cresceu com as desgraças vomitadas a todo momento, mas tinha algo que a movia para buscar um outro caminho. Talvez fosse Deus, mas preferia acreditar que era a avó, mulher sábia e amável, mas esta mostrava para Maria que era Deus o criador de tudo e que esse ser sagrado não abandonava sua criação, se esta lhe prestasse obediência, sem questionar seus mistérios.
    O que seria um abandono de Deus? Ficar triste como Maria estava sempre?
    Maria tinha medo de ir para o inferno, tentava fazer tudo de acordo com as leis de Deus para ganhar o céu. Embora sentisse certa desconfiança dessa tese, preferia não arriscar.
    Quando os doze anos visitaram Maria, a encontraram perturbada e não havia com quem dividir a tal perturbação. As palavras existiam para quem tinha a permissão de proliferá-las. Para Maria, o seu corpo era a própria palavra, uma palavra invadida, forçosamente invadida por um pênis. Seus gritos de dor e socorro eram abafados pela mão do que a julgava merecedora daquela invasão.
    Os mais profanos e angustiantes vocábulos fizeram-se presentes dentro dos  órgãos de maria Flor.
Falar sobre? Jamais. Era mulher e mulher tinha de se comportar, caso contrário merecia ser agressivamente invadida. Era culpada, mas não entendia o que era se comportar. Talvez fosse ficar trancafiada em casa.
    Depois de um tempo, o acontecimento desapareceu. Não lembrava mais disso. Somente carregava a dor ainda mais intensificada.
    Maria Flor encontrou, na vida adulta, um ferrenho medo da perda e da dor. Era estranho sentir medo do sofrimento, pois vivia nele constantemente. Como sentir medo de estar onde sempre esteve?
    Quando se descobriu grávida, alegrou-se e desesperou-se. Nunca achou a vida natural. Via como uma agressão obrigar um ser a estar no mundo. E ela estava fazendo o mesmo que fizeram com ela. Resolveu emprestar seu corpo para ser fruto da mais desnaturalizada das coisas: dar ao mundo um filho, ou dar um filho a um mundo. Será que este ser queria a vida? 
   O nono mês de gravidez encontrou Maria Flor espancada por lembranças. Num domingo ensolarado, a gestante esbravejou recordações, tomando a voz de seu pai, que havia morrido há anos:

   Cheguei do trabalho junto com minha esposa, tomei banho, alguns tragos no cigarro e na pinga e saí. O bar próximo de casa aglutinava amigos, mulheres, baralhos, cerveja e cachaça. Eu sempre traía minha esposa com putas e não putas. As que recebiam a segunda nomeação tinham família. Naquela noite, tudo transcorria normalmente até que resolvi brigar no boteco. Não sei por que usei a palavra “resolvi”, pois minhas brigas e agressões nunca se tratavam de uma resolução. Gritei, esbravejei, xinguei, bati, apanhei e saí sem pagar a conta, para outro recinto. Já estava embriagado e meu ódio aparecia e aumentava toda vez que o álcool possuía meu corpo. Não! O álcool não era meu inimigo e nem vilão, era um parceiro quase inseparável, ele me deixava do jeito que eu queria que ele me deixasse; sem ele, eu era apenas um trabalhador tolhido pela dor. Quanto ao meu ódio, não sei seu remetente verdadeiro, sei apenas que eu o enviava às pessoas queridas. Será que meu ódio era meu bem mais precioso? Voltemos à cena do segundo bar da noite. Bebi, briguei, agredi e fui agredido. Voltei para casa de madrugada, esmurrei a porta da cozinha, Geórgia a destrancou, continuei esmurrando e comecei a gritar: Abre, puta desgraçada, hoje eu te mato. Minha filha, sonolenta, ouviu gritos ao fundo que se misturaram com seus sonhos. Acordou assustada, quando a mãe entrou no quarto dela. –– Seu pai está bêbado, esmurrando a porta... –– Você não vai abrir? –– Já abri. Cansei de dar murros, entrei na cozinha, peguei uma faca fui para meu quarto. A desgraçada não estava lá... –– Agora eu vou matar vocês duas. As pobres coitadas estavam trancadas no quarto de minha filha. Um pontapé abriria aquela porta, mas não dei o pontapé. Fiquei batendo na porta e gritando o ato que eu queria cometer. Geórgia olhou pelo espaço que havia entre a porta e o portal e viu a faca em minha mão, convocou a filha para pularem a janela. Pediram socorro na casa de parentes. A polícia foi acionada. Antes de a polícia chegar, a porta do quarto se abriu com os meus socos. As desgraçadas tinham fugido. Joguei colchão, enfeites, panelas, cadeiras pelo chão da casa toda. Me dirigi, cambaleante, até o quintal e, embaixo do pé de mexerica, soltei uivos de ódio. A vizinha ficou me olhando assustada por cima do muro. Foi merecedora do meu ódio também. Algemado, fui levado para a delegacia, onde passei o resto da madrugada. Logo pela manhã, fui solto. Fui ao barbeiro, em seguida, ao bar. Voltei para casa, e as caras de assombro e medo de Geórgia e de minha filha eram perceptíveis de longe. Perguntei para minha filha quem havia chamado a polícia, ela disse que não sabia. –– Manda o desgraçado que chamou a polícia vir me enfrentar sem eu estar com algemas. Xinguei Geórgia, minha filha e o cunhado que acabara de chegar. Mais uma vez, saíram fugidas de casa. Passou-se uma semana e eu não sabia para onde tinham ido. Voltaram, mas acompanhadas pela polícia para retirarem suas roupas. Eu quis agredi-las, mas, quando vi o policial, estoquei minha agressividade para ser liberada em outro momento.         Acho que o guarda não merecia meu ódio. Dias depois fui avisado que deveria deixar a casa. Eu ajudei a erguer aquelas paredes, que guardavam dores, mas foram casulos de alguns momentos que não pesam na minha recordação... –– Ah, a vida é uma festa... Cantou minha filha, ainda pequena, quando a casa estava tomada por pedreiros, cimento, sujeira e muito cansaço. Olhei para ela, que estremeceu de medo, soltei uma gargalhada. Contei várias vezes essa história entre os amigos de boteco... eu não tinha muitas outras parecidas.
Eu sempre tive histórias desastrosas para contar como esta: Num domingo à tarde, minha filha, adolescente, estava estudando na sala, Geórgia havia ido para a casa da mãe. Mandei a filha pegar o rádio e ligá-lo para mim na varanda, pedi um lápis para ela e, tomando pinga, ouvindo música, escrevi um bilhete como se outro homem tivesse escrito para minha esposa. “Geórgia, te encontro hoje no mesmo lugar. Beijo do seu homem.” Em seguida, mandei minha filha ir até a varanda para desligar o rádio, fui até o quarto e coloquei o bilhete na janela. Deitei no chão da varanda e dormi.       A adolescente ficara atenta a todos meus passos e me seguira até o quarto sem eu perceber, me viu botando o papel na janela. Depois que eu adormeci, ela foi pegar o papel e perdeu o chão... Não acreditava em tamanha crueldade e idiotice de mal ter disfarçado minha letra. Cambaleando, saiu de casa para ir até a casa da avó, como uma fugitiva, tremia e olhava para trás para ver se não estava sendo perseguida por mim. Aos prantos mostrou para a tia o bilhete e contou a cena.                  Morrendo de medo de mim, não quis voltar para casa e temia por Geórgia, que chegaria sem saber o que estava acontecendo. Minha esposa chegou, eu estava bebendo cerveja, comecei xingá-la e falar do bilhete, ela disse que não sabia do que eu estava falando. Fui até a janela e vi que o bilhete não estava mais lá. Ofendi Geórgia e falei que ela havia retirado o papel. Quando me dei conta de que minha filha não estava mais em casa, imaginei que ela havia pegado e ido para a casa de minha mãe. Fui atrás dela, minha esposa foi em seguida, com medo que eu agredisse nossa filha. Tinha toda razão de sentir tal medo... Só não espanquei a moça porque fui segurado e, nesse dia, xinguei minha progenitora, ajoelhado no chão, prometendo que nunca mais olharia na cara dela, por ter defendido as duas desgraçadas. A dor de minha mãe só foi maior no dia da minha morte, muitos anos depois. 
    Passei anos sozinho, remoendo minha dor de ter me separado da minha casa e da minha família. Via poucas vezes minha filha, mesmo quando fomos vizinhos. Passados 10 anos de minha separação, problemas de saúde ocasionados pelo álcool e pelo cigarro me impediam de trabalhar, tinha de contar com a ajuda da Assistência Social, minha filha e familiares. Não conseguia abandonar o álcool e me envergonhava quando algum parente me via nos bares da cidade. Minhas agressões e xingamentos já não se proliferavam mais. A minha súplica era pela morte, nada apaziguava minha tristeza. Nessa época, minha filha começou a me visitar com mais frequência. As visitas tinham de ser nos bares, eram meu lar. Ela sentia grande pesar por me ver sofrendo. O meu ódio tinha minado e o ódio dela por mim havia se transformado em compaixão, mas ainda tinha medo do amor que sentia por mim. Em um domingo à noite, liguei a TV para ver futebol. Acendi um cigarro, tomei um copo de pinga, senti um incômodo, dificuldade para respirar, apaguei o cigarro, melhorei. Uma dor insuportável adentrou meu peito, uma gosma começou a escorrer pela minha boca. ¬–– A morte chegou, até que enfim. A dor aumentou, aumentou e meu pescoço pendeu para frente. Fiquei ali no sofá por mais de 24 horas até ser encontrado por minha sobrinha. O corpo em decomposição não poderia ficar à mostra. O caixão veio lacrado. Uma foto em cima da caixa que carregava os restos de uma história de muita dor. Muitas lembranças, café e cigarro para aguentar a noite. De manhã, deu-se o meu enterro.

    No crepúsculo deste domingo espancado, ouviram-se gritos, choros. O filho de Maria Flor nascera e ela fora petrificada; no dia seguinte, ela fez companhia aos dejetos de Dário.

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