sábado, 22 de fevereiro de 2014

Estilhaços


PICASSO, Pablo. A mulher chorando, 1937.


A maçaneta despencou, estilhaçou todos os pisos, o útero se desgrudou, querendo expelir a insensatez.
Os brincos jorraram sangue pelas cortinas numa busca desenfreada de se misturar com o colchão manchado  pela descrença.
Degustou o cheiro azedo instalado num pote na terceira prateleira da geladeira. Picou toda carne podre do congelador.
Sem piedade, arrastou os pés pelos quartos, abriu cada gaveta e abortou todas as roupas. O vaso sanitário emprestou suas águas para banhar todos os papéis.
A canjica apodrecida no altar arrebanhou a luz e vomitou as pimentas adocicadas pelos germes.

...

Lençol estendido
Dente
Chuveiro
Roupa
Sapato
Cigarro
Bolsa
Livros
Chaves

E desceu as escadas...

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Identidade?

   O cheiro da cana cortada misturada ao suor ainda estava ali. O cubículo escuro e nada arejado aconchegava todos os desejos. 
  A gordura já fazia parte da decoração há tempos, impossível querer removê-la, inadmissível arrancá-la das entranhas da casa.

   __ Precisamos de ácido para limpar tudo isso.

Ácido? Corroer a história? Não! Pelo amor de Deus, Não!

   __ Providenciarei o ácido para limparmos tudo.

   Tudo limpo... tudo doloridamente limpo. 

   Casa alugada, história sobreposta...

Não! Não! É uma solidão cortante não existir mais ali o cheiro do suor, do álcool e do óleo no estado de entupir as coisas.

   Restara apenas um RG e um móvel desengordurado...

Identidade? Como identificá-lo naquele móvel propositalmente limpo?

   Anos se passaram, o aroma do álcool agora engarrafado traz lágrimas, angústias e o líquido ameniza a dor.
   O móvel será levado por aquele que traz as veias entupidas de mistérios e jamais empresta a sua sujeira para reavivar o móvel carregado de alvura.

Isso! Leve-o! Deixe o álcool, deixe um pedaço seu, deixe um pedaço dele. Empreste-me um pouco do seu sebo, devolva-me a identidade dele, a sua, a nossa...

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Qual inseto?

A Grande Esfinge de Gizé, Egito.



A cama não é mais a mesma, a sala está infectada de mudanças, a cozinha exala o cheiro da transformação, o banheiro não sustenta o lugar do banho.
Eduarda não possui mais as mãos macias, nem os cabelos sedosos... o interfone toca, o sono é profundo, o som estridente, que anuncia a chegada de alguém, invade os seus sonhos.
Há um inseto ali no canto, incomodado com o barulho daquele aparelho que quer trazer alguém para seu convívio. Sai do canto, anda pela casa, passa pelos móveis, gruda na vidraça, rasteja pelo lixo da área de serviço...
Há apenas o inseto reinando no lar, Eduarda esvai-se no calor do bicho repugnante... Ressuscita, retoma seu posto de dona da casa, mas o companheiro de patas continua a perpassar pelo local.
Cansado, aloja-se no canto do quarto. O interfone grita mais uma vez...





Entrega do supermercado.





Eduarda perde-se na busca de saber quem é aquele inseto que invadiu seu sono intenso... Inseto de Kafka? Inseto de Clarice?...

Talvez seja um inseto implorando para ser decifrado e degustado... degustado por si mesmo.

Velando um caixão


MUNCH, Edvar. O Grito, 1893.

O caixão está ali, mas há dificuldade em colocar o corpo nessa caixa... Chora, reza, enlouquece de dor.
Caixão  escancarado... não há morto ali dentro, mas é preciso velá-lo... o morto ou o caixão.
Quer retirar aquele espectro do  sofá e fazê-lo entrar no caixão... cambaleando como um bêbado, ele consegue chegar próximo... precisa de ajuda para entrar na caixa mórbida... implora pela ajuda dela, mostrando-lhe  que é apenas uma fantasia...
Recusa  veemente a ajudá-lo, lutando para que aquele fantasma torne-se humano e beba com ela as dores e os prazeres da vida e fume um cigarro  para comemorar a ressurreição.  Ele se deita novamente no sofá e repousa na alma dela, contorcendo-a lascivamente.
O caixão suplica o seu choro, a defumação, o desespero, o corpo, a tampa  e a terra... Atende parte da súplica... Para o defunto, ainda cultua a esperança  leitosa. Ele  sorri com os olhos que a  destroem num imenso prazer.

A madrugada termina e ela vence o caixão... deixa-o no meio da sala, faz o nome do pai, ajoelha-se, rasteja-se num chão manchado de lamúrias e o convence a esperar mais um pouco pelo corpo.