quarta-feira, 8 de abril de 2020

Equações fechadas em si e em Se

   Levantou-se, tomou um banho, tomou café e, mais uma vez, refez suas contas. Como isso era complicado... para José.
   Acendeu um cigarro e refez as contas novamente.
   Não se tratava apenas de contas físicas, mas, sim, de uma prestação do que havia feito da vida até o momento.
   José trabalhava em escritório de contabilidade e escrevia crônicas para jornais. Por anos, quis deixar o emprego e se dedicar somente à vida de escritor ou continuar se dedicando às letras e ter um outro emprego menos estressante que o de contador.
   Acendeu outro cigarro e fez as fatídicas contas novamente. As físicas estavam ok, mas as equações fantasmáticas se resolviam com um Se. Meu Deus! Por que tanta tortura?
   Arrumou-se e foi para o trabalho. Mais um dia estressante, perturbador. Como sempre, queria ir embora e largar tudo aquilo. Conteve-se e o expediente acabou. Chegando em casa, José escreveu mais uma crônica para um jornal e sentiu-se realizado. Dormiu.
   O despertador tocou, levantou-se, tomou café e... refez as contas. Vale a pena tanto estresse? Mas sem esse estresse não tenho renda completa para minhas despesas... mas, se deixar o escritório, posso arrumar outro emprego ou escrever para mais jornais...
  Suspirou, tomou um banho, arrumou-se e foi para o trabalho. No fim do dia, encontrou-se com sua namorada, beberam, conversaram e se amaram. José teve a sensação, mais uma vez, de que as suas contas o haviam deixado em paz. Dormiu.
   Levantou-se às 6 da manhã e foi se encontrar com seus fantasmas. Não aguentava mais viver assim. Anos e anos, passando por essas malditas equações devastadoras.
   José sabia que qualquer caminho que tomasse o levaria para o Se... Era isso que ele queria eliminar ou, ao menos, minimizar.
    Conversou com a namorada sobre suas dúvidas profissionais e ela, mais uma vez, o aconselhou a tentar diminuir sua carga horária no escritório, tendo mais tempo para as escritas.
    Ele acatou e decidiu fazer esse pedido no escritório. Conseguiu! Passou a trabalhar meio período como contador e, no tempo fora do escritório, escrevia e estudava.
    Por alguns meses, José se sentiu feliz e longe das suas malditas equações fechadas em si e em Se.
    Trabalhava feliz em seus dois ofícios. 
   José teve propostas de mais jornais e sua vida financeira melhorou. Não era ruim, pois sempre conseguira pagar suas despesas, mas havia ficado melhor.
    Voltou a ver a vida com vontade de estar nela, de estar onde estava. Alívio. Alívio!
    O despertador tocou, levantou-se, tomou café, banho e foi para o trabalho. Lá foi avisado de que a Bolsa de Valores estava com vagas abertas. Vários colegas dele estavam alvoroçados com a notícia e estavam enviando currículos. José teve a certeza de que não queria aquela loucura. Estava bem.
     A vida corria normalmente. José estava satisfeito.
    E se eu tivesse me inscrito para as vagas da Bolsa? Poderia ter passado e estar com mais dinheiro. E, ainda, poderia continuar  a escrever. E, se um dia, for mandado embora de meu emprego? Terei de aceitar outro em que eu trabalhe o período todo e, provavelmente, com salário inferior ao da Bolsa de Valores.
    Acendeu um cigarro e sentou-se com suas equações novamente. Os resultados não eram diferentes.
   Torturou-se o fim de semana inteiro. Mal teve tempo de apreciar a companhia de seus amigos e de Maria.
 Insatisfeito com a quantidade tortura, apertou um pouco mais as cordas equacionais que o sufocavam. E se eu tivesse feito outras escolhas na adolescência? E se eu tivesse escolhido outra namorada? E se eu tivesse escolhido ter filhos? Com outras escolhas eu não me torturaria tanto? José sabia que outras escolhas também o teriam levado para mesma masmorra.
   Ficou sem ar, perdeu a noção de espaço e tempo. Sufocou-se em seus Ses. Sufocou-se em si.
   O despertador tocou, José fez as contas e convenceu-se de que fizera as escolhas certas.
   Foi trabalhar contente e tudo estava voltando a ter paz. Mas ele sabia que era por pouco tempo. Ele queria poder resolver essas equações de forma diferente, de eliminá-las, mas, para isso, ele sabia que precisaria ter o poder de sustentar suas escolhas... José queria esse poder, esse poder de paz.
   Adormeceu cansado de tanto pensar.   Acordou, tomou café, não refez as contas, sem saber o que o tocara para não refazer tais malefícios. Dormiu novamente. Acordou sentindo-se com certo poder. Trabalhou no escritório, escreveu crônicas em casa, namorou, divertiu-se.
  Não! José não se livrou totalmente das equações, mas conseguiu caminhar pela vida com mais poder e menos Se.
   

   
 

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Revisita

Quarto aberto
café
dores
amores
vida

um suspiro de prazer
um prazer preestabelecido
desencontro
fadigas

reencontro
felicidade nos órgãos íntimos

desejo
desejo
escrita
trabalho
vida intensamente revisitada

domingo, 15 de abril de 2018

Vó Natalina!

    Natalina Bagini Peron, uma mulher de vaidade guerreira! Facão na mão, palha tirada, café carpido. Suspiros selecionados, gargalhadas escancaradas. Dia certo para comprar a roupa de ver Deus, brincos adornando o rosto carregado de coragem.
    Ah! A mulher que colocava à mesa todo seu carinho no colorau, que dava vida ao melhor macarrão, acompanhado com batatas e carne, exposto em uma grande panela. Logo depois dos almoços de domingo, aroma preto, forte, abraçando a doçura do bolo fofinho e a marca registrada da família: pão de chocolate.
    As tradicionais festas somente se finalizavam depois de comermos arroz com ovos fritos pela Dona Natalina. E todos tinham o privilégio de escolher se a gema seria dura ou mole e de degustar esse mimo, que ela fazia com tanto carinho.
    Os ausentes, nos horários em que as comidas eram servidas, ficavam tranquilos, pois sabiam que teriam seus pratos feitos e “escondidos” pelas mãos hábeis da matriarca.
    Com todo esse amor, desfrutávamos, também, da pamonha, do milho assado, da canja de galinha, dos potinhos de plástico, resplandecendo o arroz, o feijão, o frango caipira.
   Além dos prazeres proporcionados pelas comidas, a mãe, esposa, sogra, vó e bisavó, Natalina, abriu um caminho, tirando o mato, a tiririca, a fumaça, a poeira... mostrando a todos nós a estrada fincada nos livros, nas canetas, nos lápis.
     Um "Deus te ‘bençoe’”... sempre foi força para seguir em um mundo aberto, trilhado pelo trator de quem desestabilizou cada moirão que sustentava os problemas da vida.
     Agora ficamos todos com belas lembranças, grandes exemplos e imensa saudade!



terça-feira, 20 de março de 2018

“Ó morte, tu que és tão forte... Que matas o gato, o rato e o homem “


  O título deste ensaio é parte do refrão da música “Canto para minha morte”, de Raul Seixas, e retrata a força que a morte tem na vida do ser humano. Um grande paradoxo... ou não... morte e vida...
  Pensei em escrever aqui o que penso sobre a morte e, até mesmo, minha crença religiosa diante desse fato inevitável com o qual ninguém quer se deparar, porém resolvi escrever sobre duas obras de dois poetas, “Se eu morresse Amanhã!”, de Álvares de Azevedo, e “Clarisse”, de Renato
Renato Russo e Álvares de Azevedo estão entrelaçados em suas expressões. O poema “Se eu morresse amanhã!”, deste, e a canção “Clarisse”, daquele, apresentam traços melancólicos, assim como um profundo gosto pela morte.
  Álvares de Azevedo provavelmente fora favorecido, em suas obras, pelo meio literário paulistano, impregnado de afetação byroniana, no que se diz respeito aos componentes de melancolia, sobretudo a previsão da morte, que parece tê-lo acompanhado como demônio familiar. Imitador da escola de Byron, Musset e Heine, tinha sempre à sua cabeceira os poemas desse trio de românticos por excelência, e ainda de Shakespeare, Dante e Goethe.
  Proferiu as orações fúnebres por ocasião dos enterros de dois companheiros de escola, cujas mortes teriam enchido de presságios o seu espírito. Era de pouca vitalidade e de compleição delicada; o desconforto das "repúblicas" e o esforço intelectual minaram-lhe a saúde. Nas férias de 1851-52, manifestou-se a tuberculose pulmonar, agravada por tumor na fossa ilíaca, ocasionado por uma queda de cavalo, um mês antes. A dolorosa operação a que se submeteu não fez efeito. Faleceu às 17 horas do dia 25 de abril de 1852, em domingo da Ressurreição. Como quem anunciasse a própria morte, no mês anterior, escrevera a última poesia sob o título "Se eu morresse amanhã!", que foi lida, no dia do seu enterro, por Joaquim Manuel de Macedo.
  Já a vida de Renato oscilava entre tristezas e alegrias. Por força de sua própria personalidade, Russo permanecia constantemente nas oscilações de tristezas.    E sua morte também aconteceu no meio desse paradoxo.
O líder da Legião Urbana, depois de descobrir que estava com AIDS, isolou-se da vida, em seu apartamento, e recusava qualquer tipo de tratamento.
Renato desenvolveu uma espécie de anorexia e só conseguia tomar água de coco e, para piorar, deprimiu-se profundamente.
  No dia de sua morte, disse a sua mãe: " Estou em paz, mãe. Tudo o que eu fiz de  certo e de errado já conversei com Deus".(cf. Artur Dapieve, 2000, pag. 166)


 “SE EU MORRESSE AMANHÃ!”  E “CLARISSE”

Se eu morresse amanhã !

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã !

Quanta glória pressinto em meu futuro,
Que aurora de porvir e que manhã !
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã !

Que sol ! que céu azul ! que doce n'alva
acorda a natureza mais louçã !
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã !

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã !

Vamos analisar o que diz o poema:

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã !

A morte já se faz presente nos pensamentos do eu lírico. É como se ele fizesse um "balanço" de sua vida para, assim, verificar quem possuía considerações em relação a ele.
Não há preocupação e interesse com o mundo externo, pois a preocupação do eu lírico não é em relação à dor que sua irmã e sua mãe sentiriam se ele morresse, mas  mostra que, para poucas  pessoas, ele faz falta. Isso fica claro ao analisarmos a expressão "ao menos".
Segundo o dicionário Antônio Houaiss, "ao menos" significa entretanto, todavia e estas, conforme o mesmo dicionário, significam conjunções adversativas, que indicam ideias contrárias. Notamos que a morte do eu lírico não causaria dor a ninguém, mas sua mãe e sua irmã sofreriam por ele. Assim, o ego está praticamente desprovido de autoestima, o personagem não se considera importante.

Na segunda estrofe:

 Quanta glória pressinto em meu futuro,
 Que aurora de porvir e que manhã!
 Eu perdera chorando essas coroas
 Se eu morresse amanhã !

  O eu lírico pressente um futuro claro e glorioso. Se o eu lírico morresse no dia seguinte, perderia tudo da vida, portanto choraria por não ter  o que o faria feliz.
  Com o uso do pretérito mais-que-perfeito “perdera”, fica claro que todo o futuro já foi perdido. A glória desejada será alcançada após a morte.
  Conforme Prof. Pasquale Cipro Neto (Revista Cult 57, pag 23):

... o “perfeito” (do latim: “perfectu”) de nossos pretéritos (imperfeito/perfeito/mais-que-perfeito) significa até o fim, “feito completamente”, e vem do particípio de “perfazer”, em cuja formação entra o prefixo latino “perque”, no caso, indica ideia de conclusão...

O uso  do pronome demonstrativo "essa" mostra que as coroas estão distantes do eu lírico.  A aurora, a manhã, a glória, tudo isso está longe dele: é algo que ele perdeu na vida (passado) e pode encontrar na morte (futuro próximo).
  Essa análise é possível, ao observarmos as definições de Celso Cunha para os valores dos pronomes demonstrativos. Afinal, “esses”, em relação ao tempo, refere-se a passado ou futuro pouco distante.
  A terceira estrofe (" Que sol! Que céu azul! Que doce n'alva /Acorda a natureza mais louçã!/Não me batera tanto amor no peito / Se eu morresse amanhã!”) mostra muita certeza de que, ao morrer, o eu lírico encontrará a felicidade. O caminho da glória é representado por elementos da natureza. Nessa estrofe, é citado o amor como algo que já não acontece mais:
"Não me batera tanto amor no peito"
Já nos dois primeiros versos da  4 ª estrofe; notamos que acontece a perda da capacidade de amar.

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...

  O eu lírico refere-se à dor que consome sua vida. Por meio da oração adjetiva restritiva que devora a ânsia de glória, o dolorido afã, nota-se que existem várias dores de viver, mas a que ele sente devora, acaba com as possibilidades de felicidade.
   Nos dois últimos versos da estrofe “A dor no peito emudecera / Se eu morresse amanhã!", notamos que, para a felicidade do eu lírico, é necessário que a morte física o consuma, pois a morte psicológica já aconteceu: a dor no peito emudecera (já está morto interiormente), agora, precisa morrer fisicamente, para que realmente a dor não  o incomode mais.
O eu lírico é um ser melancólico, pois demonstra  uma tristeza profunda, revelando que o motivo de sua tristeza é a doença do seu próprio ego, pois não é revelada nenhuma perda concreta que desencadeie tanta dor e sofrimento.
Existe uma cessação de interesse pelo mundo externo, o egocentrismo é muito marcante e a fuga da realidade, por meio da morte, é constante.
Vejamos, a seguir, a letra da música Clarisse, de Renato Russo.

Estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado
Quem diz que me entende nunca quis saber
Aquele menino foi internado numa clínica
Dizem que por falta de atenção dos amigos, das lembranças
Dos sonhos que se configuram tristes e inertes
Como uma ampulheta imóvel, não se mexe, não se move, não trabalha
E Clarisse está trancada no banheiro
E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete
Deitada no canto, seus tornozelos sangram
E a dor é menor do que parece
Quando ela se corta ela esquece
Que é impossível ter da vida calma e força
Viver em dor, o que ninguém entende
Tentar ser forte a todo e cada amanhecer
Uma de suas amigas já se foi
Quando mais uma ocorrência policial
Ninguém entende, não me olhe assim
Com este semblante de bom samaritano
Cumprindo o seu dever, como se fosse doente
Como se toda essa dor fosse diferente, ou inexistente

Nada existe pra mim, não tente
Você não sabe e não entende
E quando os anti-depressivos e os calmantes não fazem mais efeito
Clarisse sabe que a loucura está presente
E sente a essência estranha do que é a morte

Mas esse vazio ela conhece muito bem
De quando em quando é um novo tratamento
Mas o mundo continua sempre o mesmo
O medo de voltar pra casa à noite

Os homens que se esfregam nojentos
No caminho de ida e volta da escola
A falta de esperança e o tormento
De saber que nada é justo e pouco é certo

E que estamos destruindo o futuro
E que a maldade anda sempre aqui por perto
A violência e a injustiça que existe
Contra todas as meninas e mulheres

Um mundo onde a verdade é o avesso
E a alegria já não tem mais endereço
Clarisse está trancada em seu quarto
Com seus discos e seus livros, seu descanso

Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
E esperam que eu cante como antes

Me trancam na gaiola
Mas um dia eu consigo existir
E vou voar pelo caminho mais bonito
Clarisse só tem 14 anos


  De acordo com uma entrevista de Dado Villa-Lobos, exibida na internet, esta é uma canção autobiográfica (Internet, http://legiao-urbana.com.br/p.2)

“Estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado
Quem diz que me entende nunca quis saber
Aquele menino foi internado numa clínica
Dizem que por falta de atenção dos amigos, das lembranças
Dos sonhos que se configuram tristes e inertes
Como uma ampulheta imóvel, não se mexe, não se move, não trabalha”

  Nessa estrofe,  o eu lírico mostra-se cansado do mundo que o cerca. Não acredita mais nas pessoas e cita um menino o qual, por falta de atenção dos amigos, foi internado em uma clínica.
  Este menino traz consigo as consequências da melancolia (como uma ampulheta imóvel, não se mexe, não se move, não trabalha), ele perde todo o desejo pela vida e torna-se uma pessoa sem ação, ele apenas está vivo fisicamente, não vive, não exerce suas atividades.
  Toda a tristeza sentida pelo eu lírico é atribuída à ausência de atenção das pessoas que o rodeiam.
  Existe uma diminuição da autoestima, pois, segundo o eu lírico, as pessoas próximas dele não lhe dão  importância, ele se considera um ser não merecedor de atenção.

E Clarisse está trancada no banheiro
E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete
Deitada no canto, seus tornozelos sangram
E a dor é menor do que parece
Quando ela se corta ela esquece
Que é impossível ter da vida calma e força
Viver em dor, o que ninguém entende
Tentar ser forte a todo e cada amanhecer

  Nessa estrofe aparece uma personagem chamada Clarisse. Esta, por meio da tentativa de suicídio, procura fugir das dores da realidade. Ela corta os próprios tornozelos com um canivete e a dor física é o remédio para a dor psicológica. Clarisse é uma pessoa perturbada, não possui a calma necessária para viver, a sua força já foi perdida, portanto ela busca, na morte, a própria realização. A sua vida é cheia de dor e ninguém consegue entender o quanto é difícil ser forte a cada dia, carregando no peito  a dor vivente.

Uma de suas amigas já se foi
Quando mais uma ocorrência policial
Ninguém entende, não me olhe assim

  Nesses três versos, é mostrado que uma das amigas da personagem Clarisse já morreu, depois é feita uma alusão à polícia, dando a entender que existe algo ilegal no seu círculo de amizades.

Ninguém entende, não me olhe assim
Com este semblante de bom samaritano
Cumprindo o seu dever, como se fosse doente
Como se toda essa dor fosse diferente, ou inexistente

  O eu lírico aparece novamente, mostrando a sua descrença em relação às pessoas, ele não acredita que outros seres humanos possam ter compaixão por ele, e os ataca:

não me olhe assim com este olhar de bom samaritano

  A ironia está presente neste ataque ao “outro”, em que é relatado que a pessoa apenas finge estar preocupada com o eu lírico, mas não faz nada para ajudá-lo.
O egocentrismo é marcado fortemente, pois o eu lírico julga-se o único ser que possui essa dor, como se ninguém houvesse sentido antes e, assim, é impossível que alguém o entenda. Ele se preocupa apenas com a própria dor. Está voltado para o próprio ego, formando um escudo entre si e o mundo.

  E quando os antidepressivos e os calmantes não fazem mais efeito
Clarisse sabe que a loucura está presente
E sente a essência estranha do que é a morte
  Mas as e vazio ela conhece muito bem

Clarisse “surge” novamente e é feita uma referência às drogas (antidepressivos e calmantes).
Quando Clarisse está lúcida, a essência da morte apodera-se de sua alma como algo misterioso e esse mistério é algo a ser desvendado quando a morte realmente a consumir por completo.
A morte é citada como um vazio e Clarisse conhece isso muito bem, porque sua própria vida é vazia.

De quando em quando é um novo tratamento
Mas o mundo continua sempre o mesmo
O medo de voltar pra casa à noite

Os homens que se esfregam nojentos
No caminho de ida e volta da escola
A falta de esperança e o tormento
De saber que nada é justo e pouco é certo

E que estamos destruindo o futuro
E que a maldade anda sempre aqui por perto
A violência e a injustiça que existe
Contra todas as meninas e mulheres

Um mundo onde a verdade é o avesso
E a alegria já não tem mais endereço
Clarisse está trancada em seu quarto
Com seus discos e seus livros, seu descanso

Nota-se que Clarisse passa por vários tratamentos  para tentar recuperar-se, mas tudo isso é inútil, pois o mundo continua o mesmo.
Conforme Angélica Castilho e Érica Schlude, na obra Depois do fim, 2002 :

Em Clarisse (9º álbum), a consciência das perversidades do mundo torna uma adolescente de quatorze anos em um eu lírico profundamente incompreendido, gauche , e autodestrutivo: " E Clarisse está trancada no banheiro / E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete/ Deitada no canto, seus tornozelos sangram / E a   dor é menor do que parece.(2002, pg. 144)


Clarisse é extremamente contra o mundo que se apresenta a ela, mas não existe nada claro do que realmente a faz tão perturbada e constantemente em busca da morte. A personagem não tenta recuperar-se de toda essa dor, portanto notamos que o problema está consigo, porque não tem forças para conseguir sobreviver com os problemas da vida.

Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
E esperam que eu cante como antes

Me trancam na gaiola
Mas um dia eu consigo existir
E vou voar pelo caminho mais bonito
Clarisse só tem 14 anos

  Aqui, o eu lírico reaparece mostrando que se sente preso, mas vai conseguir libertar-se, de toda a dor do mundo através da morte. A vida é a prisão em que ele vive, morrendo, encontrará a liberdade.
  O eu lírico do poema de Álvares de Azevedo mostra-nos profunda adoração pela morte. Ele, assim como Clarisse (“personagem” da música de Renato Russo), sente-se infeliz e inconformado com a vida, pois não consegue felicidade plena.
  Em determinado momento da canção de Russo, Clarisse mostra que conhece muito bem o vazio causado pela morte, o eu lírico de “Se eu morresse amanhã!” também, pois, mesmo estando vivo fisicamente, ele retrata a sua afinidade com a morte.
  Na canção de Renato Russo temos, além de Clarisse, um eu lírico, o qual também é alguém que busca a morte como “remédio” para as suas tristezas.
  A melancolia marca fortemente essas obras, principalmente, por estas não apresentarem perdas concretas para suas vozes poéticas e suas personagens, que têm dor tão grande e obsessão pela morte.



















terça-feira, 13 de março de 2018

Os anos passam e a saudade aumenta, Flor de LiZZZZ!


    Nos conhecemos num encontro entre amigos e com muita bebida... Você chegou, se apresentou e eu não entendi seu nome... entendi alguma coisa com "is"... Então, te nomeei Flor de Lis... Na nossa primeira conversa pelo MSN, te chamei de Flor de Lis e você: LiZ com ZZZZZ, por favor... que se foda a gramática. E passou a ser a Flor de Liz com Z, marrenta, briguenta, amável, brincalhona, companheira de copo, implicante com o cigarro, uma grande amiga.
    Nosso último encontro foi na sua casa, numa tarde, regado a café... você já trêmula, em razão da medicação, mas alegre, forte e marrenta rs... fez um café, com 260 colheres de pó e ainda "tirou onda": "Uai, não é você que gosta de café forte, Li?" rs...
    Conversamos sobre sua doença, sobre as brigas com o plano de saúde, sobre a sua força, suas dores e, na sua face, transparecia a certeza de que logo partiria, na certeza de que cumpriu seu papel por aqui.
    Há alguns anos, você está enterrada pertinho do meu lar. As árvores do Bom Pastor tão belas, tão admiradas por mim, ficaram difíceis de ser encaradas. Olho pela janela do meu quarto e dói saber que uma daquelas árvores, que deixam meu apartamento mais fresco, faz sombra no seu túmulo.
    E me pego imaginando você brigando com todo mundo pelo cemitério e botando energia em todos.
    Quanta saudade, minha Flor de LiZ!




segunda-feira, 5 de março de 2018

“O gato preto”, de Edgar Allan Poe – Um conto perpassado pela psicose e pela mitologia



Autora: Eliana Gazola
Tutor: Emmanuel Mello -Clin-a


“O gato preto”, de Edgar Allan Poe, expõe uma história, cujo foco narrativo é em primeira pessoa, na qual o personagem conta sua trajetória sobre afeto e agressividade destinados à esposa e aos animais, especialmente a um gato (Pluto). O narrador-personagem situa sua agressividade em algo que está além dele (nomeando-a de “demônio da intemperança”); ou em alguma coisa que o leva a cometer as atrocidades: o álcool ¬(“Meu mal, porém, ia tomando conta de mim –– que outro mal pode se comparar ao álcool?”).
Pluto tem um dos seus olhos arrancado pelo seu dono por este achar, em certo momento, que está sendo evitado pelo felino; em seguida, é morto por enforcamento. Ao cometer tais atos, lágrimas são expostas nos olhos do personagem-narrador.
O gato preto morre e, no dia seguinte, a casa onde o narrador-personagem morava com a esposa é incendiada, sobrando apenas uma parede, com a qual estava a cabeceira da cama do casal.  Diante dessa parede, o protagonista vê uma multidão que declara palavras de espanto; porém, não se sabe se tais vocábulos são proferidos em razão de a parede ter resistido ao incêndio ou pelo que o narrador vê na parede: a imagem do gato com uma corda no pescoço. Em seguida, ele admite que pode ter sido uma alucinação e organiza uma explicação para a imagem vista (alguém poderia ter tirado o bichano da árvore, jogado pela janela e a representação do corpo da vítima ficara desenhada em razão da cal da parede e o desprendimento do amoníaco).
 Outro gato (que é visto como a possibilidade de ser a reencarnação de Pluto) aparece na vida do personagem-narrador, que elimina a esposa, por esta interferir no seu objetivo de matar o animal. O corpo é emparedado e o gato some, causando fúria no narrador-personagem, o qual, no final do conto, dá bengaladas na parede, para mostrar aos policiais investigadores o quão fortes elas são. Então, tais batidas são respondidas por meio de uivos do gato, que fora emparedado junto com o corpo da mulher, encontrado em decomposição.
O autor, Edgar Allan Poe, perde a mãe aos dois anos de idade, é adotado por um casal de comerciantes, cujo sobrenome é intercalado à identificação Edgar Poe.
A esposa do narrador de “O gato preto”, de Edgar Allan Poe, desde o início do conto é posta como alguém que aceitava as vontades do marido. Ele a ressalta e diz ter tido sorte de ter uma mulher que não se opunha ao amor e obsessão que ele tinha por ter animais.
Neste trabalho, a intenção é conjecturar sobre a psicose do narrador-personagem, o qual não consegue lidar com o amor do gato e da esposa.
Ele delira em relação ao gato, que para ele é uma fusão com a esposa. Ora, se a esposa não o tivesse atrapalhado, o gato alucinatório poderia ter morrido. O corpo em decomposição da mulher é a ressurreição do gato que, num delírio do narrador, uiva dentro da parede.
Faz-se interessante mostrar um pouco da história mitológica de Pluto e ancorar a escolha desse nome por Poe no conto.
Plutão (do grego antigo Pluto = rico) ou  Dis (do latim dives = rico) é como ficou conhecido o deus dos mortos e das riquezas na mitologia romana, após a introdução dos mitos e da literatura grega; e
 que, originalmente, não possuíam os romanos uma noção de um reino para a felicidade ou infelicidade pós-morte, como o Hades grego - senão uma imensa cavidade, chamada Orco, que mais tarde passou a identificar-se com o submundo grego. Ao deus que o comandava, então, incorporaram Hades, sob o seu epíteto de Pluto. Ele também era responsável por tudo que se encontra abaixo da terra.
Pluto, ou Plutão, como há em algumas traduções do conto de Poe, é um diabo amado e odiado e há nele a responsabilidade das coisas ruins. O gato preto, com a incorporação desse nome, se funde com a esposa do narrador, a qual não é nomeada. Pluto é tão soberano que somente ele possui um nome.
Suponhe-se que o modo de o personagem-narrador de estar no mundo esteja dentro da estrutura da psicose, por algo não ter sido instalado no simbólico e retornado por meio do delírio. O narrador não gostava de conviver com os colegas, por ser humilhado, então preferiu viver na companhia dos animais, passando a maior parte de seu tempo com eles, não havendo uma lei que o fizesse dividir seu tempo também com as pessoas. “Dado que o Nome-do-Pai se inscreve no Outro inaugurando a simbolização, a foraclusão do Nome-do-Pai na psicose corresponde no sujeito à abolição da lei simbólica, colocando em causa todo o sistema do significante” (Quinet, 2006, p. 15).
"Desde a infância observaram minha docilidade e a humanidade de meu caráter. A ternura de meu coração era de fato tão conspícua que me tornava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava especialmente de animais e, assim, meus pais permitiam que eu criasse um grande número de mascotes. Passava a maior parte de meu tempo com eles e meus momentos mais felizes transcorriam quando os alimentava ou acariciava. Esta peculiaridade de caráter cresceu comigo e, ao tornar-me homem, prossegui derivando dela uma de minhas principais fontes de prazer."
Usando uma metáfora com uma estante decorada com porta-retratos, o narrador coloca os que possuem seres humanos virados para a parede. Os que têm animais são os que aparecem as fotos.
Na fase adulta, o narrador, entre tantos animais que possuía, mostra maior afeto por Pluto, o gato que representa o inferno. A escolha de tal nome, no decorrer do conto, faz-se notar que não é ao acaso, pois, como na mitologia, o gato será tido como guardião de uma riqueza e também detestado, posto como algo do inferno. Como o personagem-narrador encontra uma mulher que o ama e faz suas vontades, ela passa a ser fundida com o gato, tanto no amor, quanto nas agressões. Pode-se dizer que o narrador-personagem é casado com Pluto-mulher.
Retornando à estante, há, na vida adulta, um retrato que inclui uma pessoa junto ao gato, porém um dia essa foto cai e o espaço deixado entre um porta-retrato e outro torna-se um abismo, o qual não é suportado pelo narrador-personagem.
Dessa forma, ele também “cai dessa estante” e não consegue fazer a organização simbólica do amor do gato (mostrado por meio do olhar) e tampouco do amor da esposa (que também era maltratada), havendo uma foraclusão destes, retornando no Real, na forma de alucinação e passagem ao ato, quando  comete atrocidades com o Pluto, delirando que o gato é quem não tem mais amor  a ser dedicado.  Na alucinação do outro Pluto (o retorno no Real)  “o que é foracluído no simbólico retorna no real” (Lacan, 1955-56, p. 98), há uma necessidade de acabar por completo com o amor que permeia a casa com a figura da esposa. Entretanto, esse Pluto vem com uma mancha branca no peito, talvez para mostrar que o outro foi realmente morto, mas que o perigo de amor (esposa) ainda está na vida do narrador.
Não havendo mais o que fazer com o amor disposto pela esposa, ele imagina que quer dar uma machadada no gato alucinado e diz que a esposa tenta salvar o Pluto, então ele mata a esposa e a empareda, ele a prende na parede e vai atrás do gato alucinado, que é encontrado (por meio de uivos delirantes)  em cima da cabeça do corpo em decomposição da esposa. O Pluto, senhor da riqueza e da morte, está guardando a riqueza do narrador, que é a morte do que ele não suportou.
O psicótico, no sentido de que ele é, numa primeira aproximação, testemunha aberta, parece fixado, imobilizado, numa posição que o coloca sem condições de restaurar autenticamente o sentido do que ele testemunha, e de partilhá-lo no discurso dos outros. (LACAN, 1955-56, p.153).
Ele mata a esposa, mas não consegue matar sua alucinação, que jamais conseguiria desde a escolha do nome do gato, Pluto, um ser imortal.
Referências
Freud, Sigmund. O estranho, 1919.
LACAN, Jacques. Livro 3 – As Psicoses. O seminário, 1955-56.
DARIAN, Leader. O que é loucura? Delírio e sanidade na vida cotidiana, 2013.
Plutão (mitologia). In: Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2013.
POE, Edgar Allan. O gato preto. Histórias extraordinárias. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002, p. 39-50.
QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose, 2006.








segunda-feira, 7 de agosto de 2017

...mas tiveram

  A casa era aconchegante como casa de avó e tenebrosa como o habitat do pai.
  Os pais saíram para trabalhar e ela ficou agonizando cada pensamento sobre a vida. Lembrava de uma palestra em que o homem achara tenebroso a mãe ter pensado em abortá-lo. Ela, descrente da vida, lamentava por sua mãe não ter tido a mesma ideia e coragem para consumir o ato.
  O lar tinha resquícios de lar, quando o pai não estava. Sua presença era sinônimo de proibição de vida.
__ Folgada.
Gritou o pai quando chegou. Mais uma vez essa característica vinda da boca de seu provedor.
 Ela continuou em seus devaneios. Folga é falta de algo. Mas não para isso  que servia um dia de folga? Faltarem coisas para fazer?
 A única coisa que nunca lhe faltava era dor.
Lembrou-se da casa da vó que sempre fora seu abrigo, mas infelizmente incapaz de lhe arrancar das profundezas mais doridas.
Caminhar por esse pântano era um ar tétrico, glorioso. Outro caminho? Por onde? Para onde?
Mais uma vez vomitou sangue. Não socorrida. Não notada.
Juntou o sangue de seu vômito ao sangue de seus pulsos. Não fora socorrida.
Tiveram a coragem de um aborto tardio, mas tiveram.