segunda-feira, 5 de março de 2018
“O gato preto”, de Edgar Allan Poe – Um conto perpassado pela psicose e pela mitologia
Autora: Eliana Gazola
Tutor: Emmanuel Mello -Clin-a
“O gato preto”, de Edgar Allan Poe, expõe uma história, cujo foco narrativo é em primeira pessoa, na qual o personagem conta sua trajetória sobre afeto e agressividade destinados à esposa e aos animais, especialmente a um gato (Pluto). O narrador-personagem situa sua agressividade em algo que está além dele (nomeando-a de “demônio da intemperança”); ou em alguma coisa que o leva a cometer as atrocidades: o álcool ¬(“Meu mal, porém, ia tomando conta de mim –– que outro mal pode se comparar ao álcool?”).
Pluto tem um dos seus olhos arrancado pelo seu dono por este achar, em certo momento, que está sendo evitado pelo felino; em seguida, é morto por enforcamento. Ao cometer tais atos, lágrimas são expostas nos olhos do personagem-narrador.
O gato preto morre e, no dia seguinte, a casa onde o narrador-personagem morava com a esposa é incendiada, sobrando apenas uma parede, com a qual estava a cabeceira da cama do casal. Diante dessa parede, o protagonista vê uma multidão que declara palavras de espanto; porém, não se sabe se tais vocábulos são proferidos em razão de a parede ter resistido ao incêndio ou pelo que o narrador vê na parede: a imagem do gato com uma corda no pescoço. Em seguida, ele admite que pode ter sido uma alucinação e organiza uma explicação para a imagem vista (alguém poderia ter tirado o bichano da árvore, jogado pela janela e a representação do corpo da vítima ficara desenhada em razão da cal da parede e o desprendimento do amoníaco).
Outro gato (que é visto como a possibilidade de ser a reencarnação de Pluto) aparece na vida do personagem-narrador, que elimina a esposa, por esta interferir no seu objetivo de matar o animal. O corpo é emparedado e o gato some, causando fúria no narrador-personagem, o qual, no final do conto, dá bengaladas na parede, para mostrar aos policiais investigadores o quão fortes elas são. Então, tais batidas são respondidas por meio de uivos do gato, que fora emparedado junto com o corpo da mulher, encontrado em decomposição.
O autor, Edgar Allan Poe, perde a mãe aos dois anos de idade, é adotado por um casal de comerciantes, cujo sobrenome é intercalado à identificação Edgar Poe.
A esposa do narrador de “O gato preto”, de Edgar Allan Poe, desde o início do conto é posta como alguém que aceitava as vontades do marido. Ele a ressalta e diz ter tido sorte de ter uma mulher que não se opunha ao amor e obsessão que ele tinha por ter animais.
Neste trabalho, a intenção é conjecturar sobre a psicose do narrador-personagem, o qual não consegue lidar com o amor do gato e da esposa.
Ele delira em relação ao gato, que para ele é uma fusão com a esposa. Ora, se a esposa não o tivesse atrapalhado, o gato alucinatório poderia ter morrido. O corpo em decomposição da mulher é a ressurreição do gato que, num delírio do narrador, uiva dentro da parede.
Faz-se interessante mostrar um pouco da história mitológica de Pluto e ancorar a escolha desse nome por Poe no conto.
Plutão (do grego antigo Pluto = rico) ou Dis (do latim dives = rico) é como ficou conhecido o deus dos mortos e das riquezas na mitologia romana, após a introdução dos mitos e da literatura grega; e
que, originalmente, não possuíam os romanos uma noção de um reino para a felicidade ou infelicidade pós-morte, como o Hades grego - senão uma imensa cavidade, chamada Orco, que mais tarde passou a identificar-se com o submundo grego. Ao deus que o comandava, então, incorporaram Hades, sob o seu epíteto de Pluto. Ele também era responsável por tudo que se encontra abaixo da terra.
Pluto, ou Plutão, como há em algumas traduções do conto de Poe, é um diabo amado e odiado e há nele a responsabilidade das coisas ruins. O gato preto, com a incorporação desse nome, se funde com a esposa do narrador, a qual não é nomeada. Pluto é tão soberano que somente ele possui um nome.
Suponhe-se que o modo de o personagem-narrador de estar no mundo esteja dentro da estrutura da psicose, por algo não ter sido instalado no simbólico e retornado por meio do delírio. O narrador não gostava de conviver com os colegas, por ser humilhado, então preferiu viver na companhia dos animais, passando a maior parte de seu tempo com eles, não havendo uma lei que o fizesse dividir seu tempo também com as pessoas. “Dado que o Nome-do-Pai se inscreve no Outro inaugurando a simbolização, a foraclusão do Nome-do-Pai na psicose corresponde no sujeito à abolição da lei simbólica, colocando em causa todo o sistema do significante” (Quinet, 2006, p. 15).
"Desde a infância observaram minha docilidade e a humanidade de meu caráter. A ternura de meu coração era de fato tão conspícua que me tornava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava especialmente de animais e, assim, meus pais permitiam que eu criasse um grande número de mascotes. Passava a maior parte de meu tempo com eles e meus momentos mais felizes transcorriam quando os alimentava ou acariciava. Esta peculiaridade de caráter cresceu comigo e, ao tornar-me homem, prossegui derivando dela uma de minhas principais fontes de prazer."
Usando uma metáfora com uma estante decorada com porta-retratos, o narrador coloca os que possuem seres humanos virados para a parede. Os que têm animais são os que aparecem as fotos.
Na fase adulta, o narrador, entre tantos animais que possuía, mostra maior afeto por Pluto, o gato que representa o inferno. A escolha de tal nome, no decorrer do conto, faz-se notar que não é ao acaso, pois, como na mitologia, o gato será tido como guardião de uma riqueza e também detestado, posto como algo do inferno. Como o personagem-narrador encontra uma mulher que o ama e faz suas vontades, ela passa a ser fundida com o gato, tanto no amor, quanto nas agressões. Pode-se dizer que o narrador-personagem é casado com Pluto-mulher.
Retornando à estante, há, na vida adulta, um retrato que inclui uma pessoa junto ao gato, porém um dia essa foto cai e o espaço deixado entre um porta-retrato e outro torna-se um abismo, o qual não é suportado pelo narrador-personagem.
Dessa forma, ele também “cai dessa estante” e não consegue fazer a organização simbólica do amor do gato (mostrado por meio do olhar) e tampouco do amor da esposa (que também era maltratada), havendo uma foraclusão destes, retornando no Real, na forma de alucinação e passagem ao ato, quando comete atrocidades com o Pluto, delirando que o gato é quem não tem mais amor a ser dedicado. Na alucinação do outro Pluto (o retorno no Real) “o que é foracluído no simbólico retorna no real” (Lacan, 1955-56, p. 98), há uma necessidade de acabar por completo com o amor que permeia a casa com a figura da esposa. Entretanto, esse Pluto vem com uma mancha branca no peito, talvez para mostrar que o outro foi realmente morto, mas que o perigo de amor (esposa) ainda está na vida do narrador.
Não havendo mais o que fazer com o amor disposto pela esposa, ele imagina que quer dar uma machadada no gato alucinado e diz que a esposa tenta salvar o Pluto, então ele mata a esposa e a empareda, ele a prende na parede e vai atrás do gato alucinado, que é encontrado (por meio de uivos delirantes) em cima da cabeça do corpo em decomposição da esposa. O Pluto, senhor da riqueza e da morte, está guardando a riqueza do narrador, que é a morte do que ele não suportou.
O psicótico, no sentido de que ele é, numa primeira aproximação, testemunha aberta, parece fixado, imobilizado, numa posição que o coloca sem condições de restaurar autenticamente o sentido do que ele testemunha, e de partilhá-lo no discurso dos outros. (LACAN, 1955-56, p.153).
Ele mata a esposa, mas não consegue matar sua alucinação, que jamais conseguiria desde a escolha do nome do gato, Pluto, um ser imortal.
Referências
Freud, Sigmund. O estranho, 1919.
LACAN, Jacques. Livro 3 – As Psicoses. O seminário, 1955-56.
DARIAN, Leader. O que é loucura? Delírio e sanidade na vida cotidiana, 2013.
Plutão (mitologia). In: Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2013.
POE, Edgar Allan. O gato preto. Histórias extraordinárias. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002, p. 39-50.
QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose, 2006.
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