terça-feira, 20 de março de 2018

“Ó morte, tu que és tão forte... Que matas o gato, o rato e o homem “


  O título deste ensaio é parte do refrão da música “Canto para minha morte”, de Raul Seixas, e retrata a força que a morte tem na vida do ser humano. Um grande paradoxo... ou não... morte e vida...
  Pensei em escrever aqui o que penso sobre a morte e, até mesmo, minha crença religiosa diante desse fato inevitável com o qual ninguém quer se deparar, porém resolvi escrever sobre duas obras de dois poetas, “Se eu morresse Amanhã!”, de Álvares de Azevedo, e “Clarisse”, de Renato
Renato Russo e Álvares de Azevedo estão entrelaçados em suas expressões. O poema “Se eu morresse amanhã!”, deste, e a canção “Clarisse”, daquele, apresentam traços melancólicos, assim como um profundo gosto pela morte.
  Álvares de Azevedo provavelmente fora favorecido, em suas obras, pelo meio literário paulistano, impregnado de afetação byroniana, no que se diz respeito aos componentes de melancolia, sobretudo a previsão da morte, que parece tê-lo acompanhado como demônio familiar. Imitador da escola de Byron, Musset e Heine, tinha sempre à sua cabeceira os poemas desse trio de românticos por excelência, e ainda de Shakespeare, Dante e Goethe.
  Proferiu as orações fúnebres por ocasião dos enterros de dois companheiros de escola, cujas mortes teriam enchido de presságios o seu espírito. Era de pouca vitalidade e de compleição delicada; o desconforto das "repúblicas" e o esforço intelectual minaram-lhe a saúde. Nas férias de 1851-52, manifestou-se a tuberculose pulmonar, agravada por tumor na fossa ilíaca, ocasionado por uma queda de cavalo, um mês antes. A dolorosa operação a que se submeteu não fez efeito. Faleceu às 17 horas do dia 25 de abril de 1852, em domingo da Ressurreição. Como quem anunciasse a própria morte, no mês anterior, escrevera a última poesia sob o título "Se eu morresse amanhã!", que foi lida, no dia do seu enterro, por Joaquim Manuel de Macedo.
  Já a vida de Renato oscilava entre tristezas e alegrias. Por força de sua própria personalidade, Russo permanecia constantemente nas oscilações de tristezas.    E sua morte também aconteceu no meio desse paradoxo.
O líder da Legião Urbana, depois de descobrir que estava com AIDS, isolou-se da vida, em seu apartamento, e recusava qualquer tipo de tratamento.
Renato desenvolveu uma espécie de anorexia e só conseguia tomar água de coco e, para piorar, deprimiu-se profundamente.
  No dia de sua morte, disse a sua mãe: " Estou em paz, mãe. Tudo o que eu fiz de  certo e de errado já conversei com Deus".(cf. Artur Dapieve, 2000, pag. 166)


 “SE EU MORRESSE AMANHÃ!”  E “CLARISSE”

Se eu morresse amanhã !

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã !

Quanta glória pressinto em meu futuro,
Que aurora de porvir e que manhã !
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã !

Que sol ! que céu azul ! que doce n'alva
acorda a natureza mais louçã !
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã !

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã !

Vamos analisar o que diz o poema:

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã !

A morte já se faz presente nos pensamentos do eu lírico. É como se ele fizesse um "balanço" de sua vida para, assim, verificar quem possuía considerações em relação a ele.
Não há preocupação e interesse com o mundo externo, pois a preocupação do eu lírico não é em relação à dor que sua irmã e sua mãe sentiriam se ele morresse, mas  mostra que, para poucas  pessoas, ele faz falta. Isso fica claro ao analisarmos a expressão "ao menos".
Segundo o dicionário Antônio Houaiss, "ao menos" significa entretanto, todavia e estas, conforme o mesmo dicionário, significam conjunções adversativas, que indicam ideias contrárias. Notamos que a morte do eu lírico não causaria dor a ninguém, mas sua mãe e sua irmã sofreriam por ele. Assim, o ego está praticamente desprovido de autoestima, o personagem não se considera importante.

Na segunda estrofe:

 Quanta glória pressinto em meu futuro,
 Que aurora de porvir e que manhã!
 Eu perdera chorando essas coroas
 Se eu morresse amanhã !

  O eu lírico pressente um futuro claro e glorioso. Se o eu lírico morresse no dia seguinte, perderia tudo da vida, portanto choraria por não ter  o que o faria feliz.
  Com o uso do pretérito mais-que-perfeito “perdera”, fica claro que todo o futuro já foi perdido. A glória desejada será alcançada após a morte.
  Conforme Prof. Pasquale Cipro Neto (Revista Cult 57, pag 23):

... o “perfeito” (do latim: “perfectu”) de nossos pretéritos (imperfeito/perfeito/mais-que-perfeito) significa até o fim, “feito completamente”, e vem do particípio de “perfazer”, em cuja formação entra o prefixo latino “perque”, no caso, indica ideia de conclusão...

O uso  do pronome demonstrativo "essa" mostra que as coroas estão distantes do eu lírico.  A aurora, a manhã, a glória, tudo isso está longe dele: é algo que ele perdeu na vida (passado) e pode encontrar na morte (futuro próximo).
  Essa análise é possível, ao observarmos as definições de Celso Cunha para os valores dos pronomes demonstrativos. Afinal, “esses”, em relação ao tempo, refere-se a passado ou futuro pouco distante.
  A terceira estrofe (" Que sol! Que céu azul! Que doce n'alva /Acorda a natureza mais louçã!/Não me batera tanto amor no peito / Se eu morresse amanhã!”) mostra muita certeza de que, ao morrer, o eu lírico encontrará a felicidade. O caminho da glória é representado por elementos da natureza. Nessa estrofe, é citado o amor como algo que já não acontece mais:
"Não me batera tanto amor no peito"
Já nos dois primeiros versos da  4 ª estrofe; notamos que acontece a perda da capacidade de amar.

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...

  O eu lírico refere-se à dor que consome sua vida. Por meio da oração adjetiva restritiva que devora a ânsia de glória, o dolorido afã, nota-se que existem várias dores de viver, mas a que ele sente devora, acaba com as possibilidades de felicidade.
   Nos dois últimos versos da estrofe “A dor no peito emudecera / Se eu morresse amanhã!", notamos que, para a felicidade do eu lírico, é necessário que a morte física o consuma, pois a morte psicológica já aconteceu: a dor no peito emudecera (já está morto interiormente), agora, precisa morrer fisicamente, para que realmente a dor não  o incomode mais.
O eu lírico é um ser melancólico, pois demonstra  uma tristeza profunda, revelando que o motivo de sua tristeza é a doença do seu próprio ego, pois não é revelada nenhuma perda concreta que desencadeie tanta dor e sofrimento.
Existe uma cessação de interesse pelo mundo externo, o egocentrismo é muito marcante e a fuga da realidade, por meio da morte, é constante.
Vejamos, a seguir, a letra da música Clarisse, de Renato Russo.

Estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado
Quem diz que me entende nunca quis saber
Aquele menino foi internado numa clínica
Dizem que por falta de atenção dos amigos, das lembranças
Dos sonhos que se configuram tristes e inertes
Como uma ampulheta imóvel, não se mexe, não se move, não trabalha
E Clarisse está trancada no banheiro
E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete
Deitada no canto, seus tornozelos sangram
E a dor é menor do que parece
Quando ela se corta ela esquece
Que é impossível ter da vida calma e força
Viver em dor, o que ninguém entende
Tentar ser forte a todo e cada amanhecer
Uma de suas amigas já se foi
Quando mais uma ocorrência policial
Ninguém entende, não me olhe assim
Com este semblante de bom samaritano
Cumprindo o seu dever, como se fosse doente
Como se toda essa dor fosse diferente, ou inexistente

Nada existe pra mim, não tente
Você não sabe e não entende
E quando os anti-depressivos e os calmantes não fazem mais efeito
Clarisse sabe que a loucura está presente
E sente a essência estranha do que é a morte

Mas esse vazio ela conhece muito bem
De quando em quando é um novo tratamento
Mas o mundo continua sempre o mesmo
O medo de voltar pra casa à noite

Os homens que se esfregam nojentos
No caminho de ida e volta da escola
A falta de esperança e o tormento
De saber que nada é justo e pouco é certo

E que estamos destruindo o futuro
E que a maldade anda sempre aqui por perto
A violência e a injustiça que existe
Contra todas as meninas e mulheres

Um mundo onde a verdade é o avesso
E a alegria já não tem mais endereço
Clarisse está trancada em seu quarto
Com seus discos e seus livros, seu descanso

Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
E esperam que eu cante como antes

Me trancam na gaiola
Mas um dia eu consigo existir
E vou voar pelo caminho mais bonito
Clarisse só tem 14 anos


  De acordo com uma entrevista de Dado Villa-Lobos, exibida na internet, esta é uma canção autobiográfica (Internet, http://legiao-urbana.com.br/p.2)

“Estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado
Quem diz que me entende nunca quis saber
Aquele menino foi internado numa clínica
Dizem que por falta de atenção dos amigos, das lembranças
Dos sonhos que se configuram tristes e inertes
Como uma ampulheta imóvel, não se mexe, não se move, não trabalha”

  Nessa estrofe,  o eu lírico mostra-se cansado do mundo que o cerca. Não acredita mais nas pessoas e cita um menino o qual, por falta de atenção dos amigos, foi internado em uma clínica.
  Este menino traz consigo as consequências da melancolia (como uma ampulheta imóvel, não se mexe, não se move, não trabalha), ele perde todo o desejo pela vida e torna-se uma pessoa sem ação, ele apenas está vivo fisicamente, não vive, não exerce suas atividades.
  Toda a tristeza sentida pelo eu lírico é atribuída à ausência de atenção das pessoas que o rodeiam.
  Existe uma diminuição da autoestima, pois, segundo o eu lírico, as pessoas próximas dele não lhe dão  importância, ele se considera um ser não merecedor de atenção.

E Clarisse está trancada no banheiro
E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete
Deitada no canto, seus tornozelos sangram
E a dor é menor do que parece
Quando ela se corta ela esquece
Que é impossível ter da vida calma e força
Viver em dor, o que ninguém entende
Tentar ser forte a todo e cada amanhecer

  Nessa estrofe aparece uma personagem chamada Clarisse. Esta, por meio da tentativa de suicídio, procura fugir das dores da realidade. Ela corta os próprios tornozelos com um canivete e a dor física é o remédio para a dor psicológica. Clarisse é uma pessoa perturbada, não possui a calma necessária para viver, a sua força já foi perdida, portanto ela busca, na morte, a própria realização. A sua vida é cheia de dor e ninguém consegue entender o quanto é difícil ser forte a cada dia, carregando no peito  a dor vivente.

Uma de suas amigas já se foi
Quando mais uma ocorrência policial
Ninguém entende, não me olhe assim

  Nesses três versos, é mostrado que uma das amigas da personagem Clarisse já morreu, depois é feita uma alusão à polícia, dando a entender que existe algo ilegal no seu círculo de amizades.

Ninguém entende, não me olhe assim
Com este semblante de bom samaritano
Cumprindo o seu dever, como se fosse doente
Como se toda essa dor fosse diferente, ou inexistente

  O eu lírico aparece novamente, mostrando a sua descrença em relação às pessoas, ele não acredita que outros seres humanos possam ter compaixão por ele, e os ataca:

não me olhe assim com este olhar de bom samaritano

  A ironia está presente neste ataque ao “outro”, em que é relatado que a pessoa apenas finge estar preocupada com o eu lírico, mas não faz nada para ajudá-lo.
O egocentrismo é marcado fortemente, pois o eu lírico julga-se o único ser que possui essa dor, como se ninguém houvesse sentido antes e, assim, é impossível que alguém o entenda. Ele se preocupa apenas com a própria dor. Está voltado para o próprio ego, formando um escudo entre si e o mundo.

  E quando os antidepressivos e os calmantes não fazem mais efeito
Clarisse sabe que a loucura está presente
E sente a essência estranha do que é a morte
  Mas as e vazio ela conhece muito bem

Clarisse “surge” novamente e é feita uma referência às drogas (antidepressivos e calmantes).
Quando Clarisse está lúcida, a essência da morte apodera-se de sua alma como algo misterioso e esse mistério é algo a ser desvendado quando a morte realmente a consumir por completo.
A morte é citada como um vazio e Clarisse conhece isso muito bem, porque sua própria vida é vazia.

De quando em quando é um novo tratamento
Mas o mundo continua sempre o mesmo
O medo de voltar pra casa à noite

Os homens que se esfregam nojentos
No caminho de ida e volta da escola
A falta de esperança e o tormento
De saber que nada é justo e pouco é certo

E que estamos destruindo o futuro
E que a maldade anda sempre aqui por perto
A violência e a injustiça que existe
Contra todas as meninas e mulheres

Um mundo onde a verdade é o avesso
E a alegria já não tem mais endereço
Clarisse está trancada em seu quarto
Com seus discos e seus livros, seu descanso

Nota-se que Clarisse passa por vários tratamentos  para tentar recuperar-se, mas tudo isso é inútil, pois o mundo continua o mesmo.
Conforme Angélica Castilho e Érica Schlude, na obra Depois do fim, 2002 :

Em Clarisse (9º álbum), a consciência das perversidades do mundo torna uma adolescente de quatorze anos em um eu lírico profundamente incompreendido, gauche , e autodestrutivo: " E Clarisse está trancada no banheiro / E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete/ Deitada no canto, seus tornozelos sangram / E a   dor é menor do que parece.(2002, pg. 144)


Clarisse é extremamente contra o mundo que se apresenta a ela, mas não existe nada claro do que realmente a faz tão perturbada e constantemente em busca da morte. A personagem não tenta recuperar-se de toda essa dor, portanto notamos que o problema está consigo, porque não tem forças para conseguir sobreviver com os problemas da vida.

Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
E esperam que eu cante como antes

Me trancam na gaiola
Mas um dia eu consigo existir
E vou voar pelo caminho mais bonito
Clarisse só tem 14 anos

  Aqui, o eu lírico reaparece mostrando que se sente preso, mas vai conseguir libertar-se, de toda a dor do mundo através da morte. A vida é a prisão em que ele vive, morrendo, encontrará a liberdade.
  O eu lírico do poema de Álvares de Azevedo mostra-nos profunda adoração pela morte. Ele, assim como Clarisse (“personagem” da música de Renato Russo), sente-se infeliz e inconformado com a vida, pois não consegue felicidade plena.
  Em determinado momento da canção de Russo, Clarisse mostra que conhece muito bem o vazio causado pela morte, o eu lírico de “Se eu morresse amanhã!” também, pois, mesmo estando vivo fisicamente, ele retrata a sua afinidade com a morte.
  Na canção de Renato Russo temos, além de Clarisse, um eu lírico, o qual também é alguém que busca a morte como “remédio” para as suas tristezas.
  A melancolia marca fortemente essas obras, principalmente, por estas não apresentarem perdas concretas para suas vozes poéticas e suas personagens, que têm dor tão grande e obsessão pela morte.



















terça-feira, 13 de março de 2018

Os anos passam e a saudade aumenta, Flor de LiZZZZ!


    Nos conhecemos num encontro entre amigos e com muita bebida... Você chegou, se apresentou e eu não entendi seu nome... entendi alguma coisa com "is"... Então, te nomeei Flor de Lis... Na nossa primeira conversa pelo MSN, te chamei de Flor de Lis e você: LiZ com ZZZZZ, por favor... que se foda a gramática. E passou a ser a Flor de Liz com Z, marrenta, briguenta, amável, brincalhona, companheira de copo, implicante com o cigarro, uma grande amiga.
    Nosso último encontro foi na sua casa, numa tarde, regado a café... você já trêmula, em razão da medicação, mas alegre, forte e marrenta rs... fez um café, com 260 colheres de pó e ainda "tirou onda": "Uai, não é você que gosta de café forte, Li?" rs...
    Conversamos sobre sua doença, sobre as brigas com o plano de saúde, sobre a sua força, suas dores e, na sua face, transparecia a certeza de que logo partiria, na certeza de que cumpriu seu papel por aqui.
    Há alguns anos, você está enterrada pertinho do meu lar. As árvores do Bom Pastor tão belas, tão admiradas por mim, ficaram difíceis de ser encaradas. Olho pela janela do meu quarto e dói saber que uma daquelas árvores, que deixam meu apartamento mais fresco, faz sombra no seu túmulo.
    E me pego imaginando você brigando com todo mundo pelo cemitério e botando energia em todos.
    Quanta saudade, minha Flor de LiZ!




segunda-feira, 5 de março de 2018

“O gato preto”, de Edgar Allan Poe – Um conto perpassado pela psicose e pela mitologia



Autora: Eliana Gazola
Tutor: Emmanuel Mello -Clin-a


“O gato preto”, de Edgar Allan Poe, expõe uma história, cujo foco narrativo é em primeira pessoa, na qual o personagem conta sua trajetória sobre afeto e agressividade destinados à esposa e aos animais, especialmente a um gato (Pluto). O narrador-personagem situa sua agressividade em algo que está além dele (nomeando-a de “demônio da intemperança”); ou em alguma coisa que o leva a cometer as atrocidades: o álcool ¬(“Meu mal, porém, ia tomando conta de mim –– que outro mal pode se comparar ao álcool?”).
Pluto tem um dos seus olhos arrancado pelo seu dono por este achar, em certo momento, que está sendo evitado pelo felino; em seguida, é morto por enforcamento. Ao cometer tais atos, lágrimas são expostas nos olhos do personagem-narrador.
O gato preto morre e, no dia seguinte, a casa onde o narrador-personagem morava com a esposa é incendiada, sobrando apenas uma parede, com a qual estava a cabeceira da cama do casal.  Diante dessa parede, o protagonista vê uma multidão que declara palavras de espanto; porém, não se sabe se tais vocábulos são proferidos em razão de a parede ter resistido ao incêndio ou pelo que o narrador vê na parede: a imagem do gato com uma corda no pescoço. Em seguida, ele admite que pode ter sido uma alucinação e organiza uma explicação para a imagem vista (alguém poderia ter tirado o bichano da árvore, jogado pela janela e a representação do corpo da vítima ficara desenhada em razão da cal da parede e o desprendimento do amoníaco).
 Outro gato (que é visto como a possibilidade de ser a reencarnação de Pluto) aparece na vida do personagem-narrador, que elimina a esposa, por esta interferir no seu objetivo de matar o animal. O corpo é emparedado e o gato some, causando fúria no narrador-personagem, o qual, no final do conto, dá bengaladas na parede, para mostrar aos policiais investigadores o quão fortes elas são. Então, tais batidas são respondidas por meio de uivos do gato, que fora emparedado junto com o corpo da mulher, encontrado em decomposição.
O autor, Edgar Allan Poe, perde a mãe aos dois anos de idade, é adotado por um casal de comerciantes, cujo sobrenome é intercalado à identificação Edgar Poe.
A esposa do narrador de “O gato preto”, de Edgar Allan Poe, desde o início do conto é posta como alguém que aceitava as vontades do marido. Ele a ressalta e diz ter tido sorte de ter uma mulher que não se opunha ao amor e obsessão que ele tinha por ter animais.
Neste trabalho, a intenção é conjecturar sobre a psicose do narrador-personagem, o qual não consegue lidar com o amor do gato e da esposa.
Ele delira em relação ao gato, que para ele é uma fusão com a esposa. Ora, se a esposa não o tivesse atrapalhado, o gato alucinatório poderia ter morrido. O corpo em decomposição da mulher é a ressurreição do gato que, num delírio do narrador, uiva dentro da parede.
Faz-se interessante mostrar um pouco da história mitológica de Pluto e ancorar a escolha desse nome por Poe no conto.
Plutão (do grego antigo Pluto = rico) ou  Dis (do latim dives = rico) é como ficou conhecido o deus dos mortos e das riquezas na mitologia romana, após a introdução dos mitos e da literatura grega; e
 que, originalmente, não possuíam os romanos uma noção de um reino para a felicidade ou infelicidade pós-morte, como o Hades grego - senão uma imensa cavidade, chamada Orco, que mais tarde passou a identificar-se com o submundo grego. Ao deus que o comandava, então, incorporaram Hades, sob o seu epíteto de Pluto. Ele também era responsável por tudo que se encontra abaixo da terra.
Pluto, ou Plutão, como há em algumas traduções do conto de Poe, é um diabo amado e odiado e há nele a responsabilidade das coisas ruins. O gato preto, com a incorporação desse nome, se funde com a esposa do narrador, a qual não é nomeada. Pluto é tão soberano que somente ele possui um nome.
Suponhe-se que o modo de o personagem-narrador de estar no mundo esteja dentro da estrutura da psicose, por algo não ter sido instalado no simbólico e retornado por meio do delírio. O narrador não gostava de conviver com os colegas, por ser humilhado, então preferiu viver na companhia dos animais, passando a maior parte de seu tempo com eles, não havendo uma lei que o fizesse dividir seu tempo também com as pessoas. “Dado que o Nome-do-Pai se inscreve no Outro inaugurando a simbolização, a foraclusão do Nome-do-Pai na psicose corresponde no sujeito à abolição da lei simbólica, colocando em causa todo o sistema do significante” (Quinet, 2006, p. 15).
"Desde a infância observaram minha docilidade e a humanidade de meu caráter. A ternura de meu coração era de fato tão conspícua que me tornava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava especialmente de animais e, assim, meus pais permitiam que eu criasse um grande número de mascotes. Passava a maior parte de meu tempo com eles e meus momentos mais felizes transcorriam quando os alimentava ou acariciava. Esta peculiaridade de caráter cresceu comigo e, ao tornar-me homem, prossegui derivando dela uma de minhas principais fontes de prazer."
Usando uma metáfora com uma estante decorada com porta-retratos, o narrador coloca os que possuem seres humanos virados para a parede. Os que têm animais são os que aparecem as fotos.
Na fase adulta, o narrador, entre tantos animais que possuía, mostra maior afeto por Pluto, o gato que representa o inferno. A escolha de tal nome, no decorrer do conto, faz-se notar que não é ao acaso, pois, como na mitologia, o gato será tido como guardião de uma riqueza e também detestado, posto como algo do inferno. Como o personagem-narrador encontra uma mulher que o ama e faz suas vontades, ela passa a ser fundida com o gato, tanto no amor, quanto nas agressões. Pode-se dizer que o narrador-personagem é casado com Pluto-mulher.
Retornando à estante, há, na vida adulta, um retrato que inclui uma pessoa junto ao gato, porém um dia essa foto cai e o espaço deixado entre um porta-retrato e outro torna-se um abismo, o qual não é suportado pelo narrador-personagem.
Dessa forma, ele também “cai dessa estante” e não consegue fazer a organização simbólica do amor do gato (mostrado por meio do olhar) e tampouco do amor da esposa (que também era maltratada), havendo uma foraclusão destes, retornando no Real, na forma de alucinação e passagem ao ato, quando  comete atrocidades com o Pluto, delirando que o gato é quem não tem mais amor  a ser dedicado.  Na alucinação do outro Pluto (o retorno no Real)  “o que é foracluído no simbólico retorna no real” (Lacan, 1955-56, p. 98), há uma necessidade de acabar por completo com o amor que permeia a casa com a figura da esposa. Entretanto, esse Pluto vem com uma mancha branca no peito, talvez para mostrar que o outro foi realmente morto, mas que o perigo de amor (esposa) ainda está na vida do narrador.
Não havendo mais o que fazer com o amor disposto pela esposa, ele imagina que quer dar uma machadada no gato alucinado e diz que a esposa tenta salvar o Pluto, então ele mata a esposa e a empareda, ele a prende na parede e vai atrás do gato alucinado, que é encontrado (por meio de uivos delirantes)  em cima da cabeça do corpo em decomposição da esposa. O Pluto, senhor da riqueza e da morte, está guardando a riqueza do narrador, que é a morte do que ele não suportou.
O psicótico, no sentido de que ele é, numa primeira aproximação, testemunha aberta, parece fixado, imobilizado, numa posição que o coloca sem condições de restaurar autenticamente o sentido do que ele testemunha, e de partilhá-lo no discurso dos outros. (LACAN, 1955-56, p.153).
Ele mata a esposa, mas não consegue matar sua alucinação, que jamais conseguiria desde a escolha do nome do gato, Pluto, um ser imortal.
Referências
Freud, Sigmund. O estranho, 1919.
LACAN, Jacques. Livro 3 – As Psicoses. O seminário, 1955-56.
DARIAN, Leader. O que é loucura? Delírio e sanidade na vida cotidiana, 2013.
Plutão (mitologia). In: Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2013.
POE, Edgar Allan. O gato preto. Histórias extraordinárias. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002, p. 39-50.
QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose, 2006.