Os pesadelos pululavam e a colocavam
numa vida quase real. Aos doze anos, Dora passou um perfume, o primeiro de sua
vida. E o pai disse que ela estava com cheiro de puta amanhecida. A menina não
sabia exatamente o que era uma puta, mas, pelo tom de voz do pai e pelas vezes
que usou esse vocábulo como xingamento, entendeu que não se tratava de algo
bom.
De repente estava amarrada em uma
cama de hospital. Sentiu sede, pediu água para o enfermeiro. Ele se aproximou
com um copo de plástico e jogou a água na cara dela. A cena mudou rapidamente e Dora se viu em um corredor sendo estuprada. Tentava, sabe-se lá
como, sair do pesadelo, no entanto não tinha forças para fugir do estuprador e
nem para acordar.
A força que a movia no pesadelo era
apenas para mudar as cenas. Passou para o lugar onde estava no momento. A
noite tinha sido de muita mágoa e muito
choro. No amanhecer, Fred, seu companheiro, a acariciou, buscando sexo. Ela não
queria. Ele masturbou-se e ejaculou nela. Dora sentiu a sua dor crescer e as
forças para acordar cada vez minguavam mais. Sentou-se na cama porque a mãe a
acordara para bater nela, pois havia descoberto um caderno em que Dora relatava
seu interesse por um moço que estava morando, há pouco tempo, no bairro onde
ela morava.
Acordou, coração acelerado, choro,
cama demasiadamente grande. Trêmula, levantou-se para tomar água. A água tinha
gosto de carniça, pois havia se misturado com o sangue que ainda estava na boca
de Dora.
A dor no peito era insuportável,
começou a vomitar sangue novamente. O companheiro, que acabara de chegar em
casa, não viu necessidade de levá-la a um hospital. Dora não conseguia
entender, pois, em outras vezes, ele a havia socorrido.
Uma amiga passou a tarde com ela em um Pronto Socorro.
Quando Dora estava em casa novamente,
sentiu pânico, chorou, chorou, não havia como arrancar a dor que sentia. O
choro era insuficiente. Pensou em recorrer à escrita, mas a angústia aumentava
e sentia medo de apanhar do papel e da caneta.
Começou a se lembrar de quando
frequentava as aulas de crisma. O palestrante dissera que um verdadeiro cristão
nunca se sentia triste. Dora sempre perambulava no mundo da tristeza, então não
podia ser cristã. Nessa aula, achou que a sua infelicidade pudesse ser castigo.
Quando criança, morria de medo de Deus. Na pré-adolescência, quando cursava o
catecismo, não gostou quando a professora disse: Vocês podem duvidar de tudo,
até dos livros da escola, mas não podem duvidar da Bíblia. Nesse dia, Dora fora
para casa pisando o fogo do inferno. Gostava mais dos livros da escola do que
da Bíblia. Essa obra lhe causava angústia.
O choro voltou com muita força,
sentia-se culpada por ser ela, mas nem sabia quem era. Porém, achava que
deveria ter sido o que a família, o companheiro, a Bíblia e Deus esperaram
dela.
Agora não havia mais jeito, não
conseguia desfazer a dor e, muito menos, a descrença e o medo que sentia da
vida.
Dora sempre cortejara a dor e a
morte. Na adolescência, fazia parte do grupo que ouvia músicas que desenhavam a
tristeza, adentravam nessas letras. Possuía um amigo que, como ela, gostava dos
autores malditos, conversavam sobre as obras, escreviam poemas. Não viam beleza
na vida cotidiana. A maravilha estava lá: nos autores que mexiam em todos os
órgãos não corporais do leitor.
Um suspiro. Saudade. Dor. Dúvida.
O choro voltou ainda mais forte.
Lembrou-se de todos os amores que havia tido até o momento, parecia sentir na
pele as cintadas por causa do caderno que a denunciou à mãe. A dor no peito
voltou, o mundo estava desabando novamente. Agora também doía a barriga. Dora
tinha um feto dentro de si, mas duvidava se seria digno colocar alguém num
mundo em que ela não dava conta.
A dor no peito aumentou, a da alma
era maior. Deixou o peito e o útero doerem, desejava que a dor fosse ainda
maior, para que a sua angústia fosse amenizada.
Começou a sangrar. Da boca, saía uma
gosma. Quando o marido de Dora chegou, ela estava morta.
Ele comunicou a família. Não
compareceu ao velório e ao enterro.
Não se sabe se ele chorou a morte da
companheira e a do feto.