sábado, 29 de outubro de 2016

Enigma


      Havia sangue pelo chão, quando Dora acordou, um gosto de algo podre dominava seu paladar. Voltou a dormir. Mesmo assim, não obteve paz.
Os pesadelos pululavam e a colocavam numa vida quase real. Aos doze anos, Dora passou um perfume, o primeiro de sua vida. E o pai disse que ela estava com cheiro de puta amanhecida. A menina não sabia exatamente o que era uma puta, mas, pelo tom de voz do pai e pelas vezes que usou esse vocábulo como xingamento, entendeu que não se tratava de algo bom.
De repente estava amarrada em uma cama de hospital. Sentiu sede, pediu água para o enfermeiro. Ele se aproximou com um copo de plástico e jogou a água na cara dela. A cena mudou rapidamente e Dora se viu em um corredor sendo estuprada. Tentava, sabe-se lá como, sair do pesadelo, no entanto não tinha forças para fugir do estuprador e nem para acordar.
A força que a movia no pesadelo era apenas para mudar as cenas. Passou para o lugar onde estava no momento. A noite  tinha sido de muita mágoa e muito choro. No amanhecer, Fred, seu companheiro, a acariciou, buscando sexo. Ela não queria. Ele masturbou-se e ejaculou nela. Dora sentiu a sua dor crescer e as forças para acordar cada vez minguavam mais. Sentou-se na cama porque a mãe a acordara para bater nela, pois havia descoberto um caderno em que Dora relatava seu interesse por um moço que estava morando, há pouco tempo, no bairro onde ela morava.
Acordou, coração acelerado, choro, cama demasiadamente grande. Trêmula, levantou-se para tomar água. A água tinha gosto de carniça, pois havia se misturado com o sangue que ainda estava na boca de Dora.
A dor no peito era insuportável, começou a vomitar sangue novamente. O companheiro, que acabara de chegar em casa, não viu necessidade de levá-la a um hospital. Dora não conseguia entender, pois, em outras vezes, ele a havia socorrido.
            Uma amiga passou a tarde com ela em um Pronto Socorro.
Quando Dora estava em casa novamente, sentiu pânico, chorou, chorou, não havia como arrancar a dor que sentia. O choro era insuficiente. Pensou em recorrer à escrita, mas a angústia aumentava e sentia medo de apanhar do papel e da caneta.
Começou a se lembrar de quando frequentava as aulas de crisma. O palestrante dissera que um verdadeiro cristão nunca se sentia triste. Dora sempre perambulava no mundo da tristeza, então não podia ser cristã. Nessa aula, achou que a sua infelicidade pudesse ser castigo. Quando criança, morria de medo de Deus. Na pré-adolescência, quando cursava o catecismo, não gostou quando a professora disse: Vocês podem duvidar de tudo, até dos livros da escola, mas não podem duvidar da Bíblia. Nesse dia, Dora fora para casa pisando o fogo do inferno. Gostava mais dos livros da escola do que da Bíblia. Essa obra lhe causava angústia.
O choro voltou com muita força, sentia-se culpada por ser ela, mas nem sabia quem era. Porém, achava que deveria ter sido o que a família, o companheiro, a Bíblia e Deus esperaram dela.
Agora não havia mais jeito, não conseguia desfazer a dor e, muito menos, a descrença e o medo que sentia da vida.
Dora sempre cortejara a dor e a morte. Na adolescência, fazia parte do grupo que ouvia músicas que desenhavam a tristeza, adentravam nessas letras. Possuía um amigo que, como ela, gostava dos autores malditos, conversavam sobre as obras, escreviam poemas. Não viam beleza na vida cotidiana. A maravilha estava lá: nos autores que mexiam em todos os órgãos não corporais do leitor.
Um suspiro. Saudade. Dor. Dúvida.
O choro voltou ainda mais forte. Lembrou-se de todos os amores que havia tido até o momento, parecia sentir na pele as cintadas por causa do caderno que a denunciou à mãe. A dor no peito voltou, o mundo estava desabando novamente. Agora também doía a barriga. Dora tinha um feto dentro de si, mas duvidava se seria digno colocar alguém num mundo em que ela não dava conta.
A dor no peito aumentou, a da alma era maior. Deixou o peito e o útero doerem, desejava que a dor fosse ainda maior, para que a sua angústia fosse amenizada.
Começou a sangrar. Da boca, saía uma gosma. Quando o marido de Dora chegou, ela estava morta.
Ele comunicou a família. Não compareceu ao velório e ao enterro.
Não se sabe se ele chorou a morte da companheira e a do feto.


domingo, 2 de outubro de 2016

Sem ensinar, a vó Tunica me ensinou o que é o amor

Oi, vó, bença. Nunca ficamos tanto tempo assim sem nos ver, né? Mais de um ano. E ficaremos muito mais.
Estava mexendo na caixa em que guardo o RG do meu pai, o isqueiro do vô Peron e um lenço da senhora. Ah, o seu cheiro, Tuniquinha, está nele. Chorei tanto de saudade da senhora.
Ouvi sua voz dizendo: Lianinha, pra tudo nessa vida se dá um jeito. Mas ouvir apenas na lembrança não me acalma totalmente.
Eu queria chegar aí na sua casa, ver seu rosto meigo, calmo e ouvir a senhora dizendo que toda noite reza por todos nós.
Ah! Meus dias têm sido movidos pela senhora. Para levantar-me da cama, penso: O que a vó Tunica faria para enfrentar esses problemas? Sei que uma das coisas seria rezar. Então, rezo. Para falar a verdade, vó, o que me move é saber o que a senhora faria no meu lugar e não é, propriamente, a oração  que me bota de pé.
Hoje eu estava tomando banho e lembrei-me de quando tinha um sapo no quintal, eu e o Denim começamos a gritar de medo. E lá veio a senhora com uma vassoura nos defender do ser asqueroso. Estou tendo de lutar com alguns sapos, vó. Queria que a senhora estivesse aqui com aquela vassoura para me defender. A senhora não está, mas ainda me protege.
A senhora se lembra do Lulu? Cachorrinho companheiro, né? E as plantas que a senhora tinha? Lembro-me sempre dos cipós. Não sei se existe outro nome para essa planta, mas, para mim, sempre que vejo uma, digo: Cipozinho da vó Tunica.
Ai, Tuniquinha, às vezes, sinto pena de quem não teve uma vó Tunica.
 Lembra-se de quando a senhora pedia para eu escrever cartas para a tia Luzia de São Paulo? Eu achava tão chique: minha letra com as palavras da senhora estavam indo para a capital.
Lembro-me da senhora dizendo: É, minha cara, nessa vida a gente tem que engolir o boi com chifre e tudo.
Certa vez, tentaram "quebrar" essa sua frase, dizendo-me que, picar o boi e transformá-lo em bifes, fica mais fácil.
Inútil. Nada supera a sabedoria da senhora. Engolir o boi com chifre e tudo faz a digestão ser mais dolorosa, mas a gente fica mais forte.
Eu ainda não acredito que a senhora morreu. Mais de um ano e a dor não passa. É como as dores que a senhora sentia nos ossos. Às vezes davam uma trégua.
Eu queria ver a senhora e contar tudo o que está acontecendo na minha vida e ouvir a sua calma voz, dizendo: Pra tudo nessa vida se dá um jeito. A sua voz, sim, me fortaleceria.
Depois escrevo mais para relembrarmos juntas da importância que a senhora tem na minha vida.
A senhora me ensinou o que é o amor, sem ensinar.
Tchau, vó, bença.