segunda-feira, 2 de junho de 2014

Donquixoteando

Um olhar, fotografando o intestino, as veias, a mucosa mais voluptuosa, finco labial. Suspiro arfante.
Descarga.
Uma parede apenas os separa. Não há paredes... a água despenca, cai plena, serena.
Descarga.
A chave balança, traz o pêndulo. A porta ao lado se abre. Nenhum barulho de água. Uma tosse.
A janela do ônibus sacoleja indistintamente seus membros, suas dores e sua cura. Dor? A cura chegara em forma de um espancamento coronário.
Telefone! Mãos saltitantes, unhas impecavelmente trêmulas. Não é! Nunca é! Sempre é!
Amanhã será... será nas formas torneadas de um aposento sem aposento. De um ser sem sê-lo.
Almofadas com cheiro da saliva dele, uma cama cúmplice, um cheiro de... de... de... um tom inexplicável.
Um quadro, um poema.
Escadas, subida, o deleite, o som do despencar da água, da perpetuação.
Mesmo ritmo, mesmo enlouquecer. O ritmo segue a mesma nota ali... ali em outros cabelos, outra boca, outro ombro, outras mãos.
Não... é aqui que o ritmo segue numa similaridade descompassante, fervorosa.
Um pouco de água... lucidez alucinante retomada. O olhar, a cura, o vício.
A fumaça da cama. O som da roseira. Olhar de súplica. O fígado fazendo o coração bombardear as paredes com cores, cores e cores. Um sorriso delgado.
Morros que abraçam outro cenário, outro corpo. 
Este corpo, este corpo. O abraço é aqui! Sempre aqui! Mesmo que seja lá...


domingo, 1 de junho de 2014

Tinha de dividir até a mãe...

       Um tal de João de Santo Cristo ao fundo. Uma letra meio difícil de ser compreendida, embalada por certo amigo Pedro, numa certa adolescência.

       __ Chegou! É uma menina!
       __ Não quero uma menina, quero um moleque para jogar bola comigo.
       __ Mas só havia meninas no hospital.
     Piso vermelho na casa toda... Não! A varanda era verde. Metade da parede da cozinha também era verde. A casa, o sofá, o tanque, o quarto, a mesa com gaveta na cozinha, os gritos, as brigas, o despertador barulhento, o rádio branco com o símbolo do Palmeiras, as cobertas, o pé de mexerica, as galinhas do quintal, o canteiro de almeirão... agora tudo tinha de ser dividido. Tinha de dividir até a mãe. Dividir a mãe... Talvez fosse melhor dividir os pais: o pai para ela e a mãe para ele. Não! Tinha de dividir tudo. Não tinha mais nada por inteiro.
      Casa da vó... dividir a vó era mais fácil... ela se multiplicava.
      Lição de casa! A vó dizia que, antes de qualquer atividade, deveria ser pedida a ajuda de Deus. Rezou antes de fazer a tarefa... ficou intrigada:  Mas não é Deus que me ajuda a fazer a lição, quem faz isso é meu irmão. Será que é Deus que ensina as coisas para ele?
     O irmão dividia também o conhecimento. Ele era bem sabido. Tomava a leitura até ela parar de ler de soquinho. Ele sabia muita coisa além das que a tia ensinava na creche. Ela sempre achava que todo o conhecimento passado pelo irmão, um dia, seria dado na escola e que ela estaria adiantada.
     Ele sabia que o Palmeiras era o melhor time do mundo e sabia o nome de todos os jogadores, tinha até um álbum de figurinhas. Sabia cantar as músicas da "Turma do Balão Mágico". Sabia que, na casa quase vizinha do sítio da vó e do vô, existiam fantasmas. Sabia que era o córrego perto da estrada que dava peixes. Sabia dobrar palhas. Sabia que aquela cara brava era sinal de explosões e brigas. Sabia que as casas eram feitas com tijolos e concreto. Sabia manusear a televisãozinha com fotos da Aparecida do Norte. Sabia que, se colocasse uma embalagem de chocolate na frente dos olhos, a TV deixava de ter imagem preta e branca. Sabia deixar apenas um olho aberto para ver retrato no monóculo. Tanta coisa... mas nada disso veio como matéria escolar...
      Um embrulhar vital de aventuras, tristezas e alegrias...
      Um violão, um rádio e fitas K7 levando Renato e Raul para que ela conhecesse...

      Um tal de João de Santo Cristo ao fundo. Uma letra meio difícil de ser compreendida, embalada por um certo amigo Pedro e por certa adolescência, a qual rega duas vidas adultas...